O cinema tem sido um refúgio formidável. Se antes o caminho para o trabalho era o espaço para as leituras, mesmo que não ideal, agora o cinema é o espaço para a introspecção estética. Não, eu não leio no cinema. Seria um crime com o cineasta,ainda que sem dúvida deva ser mais tranquilo que o metrô.
Acontece que o programa conjuga ainda o relacionamento, conjugal, no plural de nossas subjetividades cotidianas, algo que a leitura não proporciona. Sendo assim, aproveitamos os hiatos das crianças e nos refugiamos no escurinho do cinema, com direito a um e outro beijinho de casal em meio aos enredos selecionados, algumas vezes complexos, outras não. E, assim, vamos consolidando nosso pequeno núcleo familiar. E , coincidência ou não, em uma destas idas e vindas, fomos assistir Álbum de Família, retrato de uma, veja você, uma família. Ironias à parte, de eu ter ido com minha mulher ver a película, o enredo trata dos rodriguianismos de um exemplar do agrupamento de Oklahoma, no centro-sul dos Estados Unidos.
O filme conta com diversos atrativos, o primeiro deles é o enredo, construído a partir de uma peça de teatro premiada que obteve a marca de mais de 600 performances na Broadway depois de cerca de um ano e meio em cartaz, algo quase inimaginável aqui no Brasil neste curto espaço de tempo, ainda mais para uma peça tão psicológica.
“A vida é muito longa”. Citando Eliot, e a ironia de que um poeta se aproprie de uma frase tão simbólica, Beverly inicia o plot do filme. Durante uma entrevista a uma índia Cheyenne, explica seu acordo com Violet em suas décadas de casamento – ele bebe, ela toma remédios. Ao final, após ela ter contato com uma crise da sua futura patroa, acaba contratando Johnna para os afazeres domésticos. Em seguida , o poeta desaparece e seu desaparecimento acaba atraindo a família Weston para a casa que serve como território das neuroses familiares.
Beverly Weston é o personagem que não está lá, cuja ausência gira o enredo do filme. Mas quem protaniza esta ausência é Meryl Streep, que concilia mais uma vez uma excelente interpretação com a força de uma personagem extremamente complexa, não sabemos se torcemos por ela ou se a odiamos. Pouco a pouco, vão chegando os demais membros desta família e sendo introduzidos ao espectador.
É justamente aí que conhecemos a outra faceta da história. Creio que não lembro de um filme que tenha reunido um elenco de atores tão bom em apenas um filme. Além da “au concurs” Meryl Streep, temos Julia Roberts, Ewan McGregor, Juliette Lewis, Benedict Cumberbatch e, particularmente um dos que eu mais admiro, Chris Cooper. Isto sem contar outros que não conhecia, mas que também são excelentes, a exemplo da Julianne Nicholson e a própria índia, Misty Upham.
Conforme somos apresentados aos personagens, somos introduzidos na história da família, que, apesar da histeria e as brigas constantes, guarda segredos que são expostos um a um durante a “celebração” do extenso encontro. Porém, o mais engenhoso do enredo é a revelação do papel social de cada membro da família. Afinal, a família é muito mais que um agregado de indivíduos, sua dimensão psicológica está no papel que vai sendo delegado gradativamente para cada membro, relativo ao todo. No entanto, este papel muitas vezes não é aceito passivamente, é aí que surgem as maiores tensões, e justamente são elas que complementam o tecido psicológico da trama.
E, por fim, lembra que todos nós temos o nosso calvário, cujo enredo vai se costurando com o drama cotidiano de nossas histórias, nossos álbuns, com roteiros muitas vezes mais ridículos e clichês. Afinal, Deus é um péssimo roteirista.
Bogado Lins é escritor, roteirista e articulador do Literatura Cotidiana