O tema do fim do mundo é um tanto recorrente no cotidiano. Quando descobrem alguma fonte misteriosa, de um povo desaparecido, ou de um profeta maluco, decretando o fim dos tempos, ele retorna com mais força. 2012 foi o maior exemplo da euforia coletiva, mas não o único. Quem não lembra da virada do milênio? Houve até uma justificativa para o mundo entrar em parafuso, o tal bug do milênio. No final, tudo continuou sendo como sempre fora e, pasmem, já estamos em 2014.
Para as religiões, o fim do mundo costuma representar uma oportunidade. Antes de tudo, a confirmação do poder divino. Além disto, a chance de demonstrar que aqueles que fizeram as escolhas certas serão escolhidos. Praticamente um higienismo onde os eleitos sobreviverão, ou ascenderão ao reino dos céus, que seja. Não surpreende, portanto, a ânsia eterna de que o céu caia sobre nossas cabeças, “viu, eu estava certo!”.
Creio que a questão introduz bem o filme Noé. Obviamente o filme não narra o próximo fim do mundo, mas aquele que supostamente ocorreu antes de nós, e que exigiu de Noé a construção de uma arca em proporções gigantescas para abrigar os animais e, claro, os escolhidos de Deus.
Porém, o filme tem uma qualidade, ele se preocupa mais em ser um filme mítico, do que propriamente bíblico. Ao narrar a criação do mundo e a expulsão do paraíso de Adão e Eva, contextualizando o nascimento de Noé e da linhagem de Caim, ele consegue sedimentar bem a narrativa de modo a instaurar o clima de mistério necessário para a película. Neste sentido, o roteirista foi feliz ao utilizar a dose certa de referencias bíblicas, afinal o interessante de um roteiro desta natureza é justamente sua fonte, por mais que se relativize ou mesmo não se creia. Por outro lado, há o desafio de trazer para a realidade das pessoas de modo palpável para que o enredo se estabeleça entre o mito e a realidade. Este é outro ponto positivo na minha opinião do filme, contextualizar debates em voga a respeito de sustentabilidade e livre arbítrio.
Talvez o único exagero, ainda que em parte justificado, são os guardiões, que complementam a natureza fantástica da história. Eu mesmo não me incomodei com eles, de alguma forma conseguem se integrar no ambiente misterioso mítico,em oposição ao puramente bíblico, lembrando o Deus do antigo testamento, mas sujeito à opiniões controversas, de modo a extinguir povos a seu bel prazer e mesmo com seus escolhidos, pregar uma peça a outra, como fez com Jó, exigindo-lhe paciência eterna. Além disto, lembra os milagres mais comuns naquele período, como as pragas do Egito ou mesmo o dilúvio propriamente dito.
Convenhamos que este Deus é muito mais cinematográfico do que aquele que veio depois, ainda que mais simpático e fotogênico, com barba e tudo. Até costurar uma história para dar a devida coerência a um fato e outro chega a ser interessante, provando mais uma vez porque a bíblia, mesmo com todas as deturpações de traduções e simplificações,algumas que reduzem o palavreado de modo suficiente para que um telespectador do Jornal Nacional possa lê-lo sem grandes desafios, ainda assim prossegue sendo o livro mais lido.
Óbvio que o fato de ser um filme bíblico suscita as mais diferentes críticas. De um lado, de outro, e do oposto, se é que isto é possível. Ninguém pareceu tão satisfeito. Ateus, ou simpatizantes, pelo fato de ter sido fantasioso ou talvez bíblico demais. De todo o modo, não criticariam com tanta veemência um filme sobre mitologia grega. Cristãos porque o diretor não seguiu o pé da letra da palavra, ainda que as lacunas devessem ser preenchidas e, sobretudo, roteirizadas. E os muçulmanos, bem, os muçulmanos nunca gostaram muito que mexam com seus profetas.
Sendo assim, aconselho a quem assistir a película que abandone o rigor do pé da letra. O bacana do mito é funcionar entre uma metáfora e um mundo fantasioso de seres incríveis, como por exemplo gigantes ou seres de pedra, e um enredo rico em distúrbios humanos. E, afinal, o desejo de purificação, o debate sobre até onde você serve a Deus ou aos seus próprios desígnios e natureza humana, tão díspare, serve como um bom pano de fundo para o plot e para a discussão após o filme.
E daí depois você se decide, ao depender da sua crença ou não, se trata-se de uma obra ficção ou inspirada em fatos reais.
Bogado Lins é escritor, roteirista e articulador do Literatura Cotidiana
2 Comentários. Deixe novo
O filme definitivamente não me pegou. Você me conhece, Marquinho e a última coisa que sou é religioso. Não tem nada a ver com isso, na minha visão, o fato de não ter gostado da película. Gostei muito da sua crítica, muito mais do que do filme. Amo esse diretor e penso que isso tenha sido um problema. Esperava um filme que me prendesse na cadeira do cinema e me tirasse o fôlego, estilo CISNE NEGRO e o que vi foi uma colcha de retalhos de temas mitológicos, misturado com sustentabilidade e até vegetarianismo. Se era para trazer uma história mais “condizente” com a realidade, por que os atores tão “limpinhos”? Todos os dentes na boca… sério, naquela época? O filho mais velho foi o que mais me irritou. O cara parecia um modelo, com seus cabelos esvoaçantes e sua barba feita. Olha… pode achar frescura, mas não dá… Os “Guardiões” só me incomodaram mesmo na cena em que eles tentam impedir os humanos de entrarem na arca. Me senti num dejá vú de Senhor dos anéis. Entre anjos e vilões, não salvaram-se todos… infelizmente.
Olá André,
na verdade eu não tinha grandes expectativas a respeito do filme, antes pelo contrário. Mas ele me pegou. Talvez pelo fato de não conhecer direito às passagens, fiquei me perguntando quais eram verdades ou não. Uma coisa que eu sempre achei engraçada era como este pessoal vivia nesta época. Quase 1000 anos. Meu sogro, muito religioso, justifica porque eles não tinham pecados.
Acho também que esta coisa da estética clean. Bem, isto não dá para fugir, estamos em Holywood, mas acho que o que deve ter te decepcionado foi a expectativa com o filme, que no meu caso foi reverso.