Um grande desenhista certa vez me falou que a essência de um bom desenho é o movimento. A questão não é tanto retratar fielmente o retratado, mas dar movimento a cena, insinuar a ação, preparar o próximo quadro. Utilizo a noção até hoje para analisar os tantos artistas que tenho a oportunidade de apreciar.
Muito tempo depois, em uma agência onde trabalhei por anos, conheci um arquiteto especializado em desenhar paisagens em três dimensões. Já tinha visto outros, mas este tinha um talento peculiar. Fazia vistas que não raro se quedavam mais bonitas que às vistas reais de como mais tarde ficariam os eventos. Mais adiante, apresentou-me o seu insight que o auxiliava a realizar vistas tão apreciadas: tudo se resumia à luz.
A soma simples já me concedeu dois recursos para analisar qualquer obra: movimento e luz. E movimento e luz são os ingredientes que criam um elemento ainda mais apropriado para analisar qualquer forma artística, de qualquer matriz, seja ela qual for: histórias. Pode-se dizer que na arte, tudo se resume a uma boa história. Quem são os personagens? O que eles insinuam? Quais os sentimentos que afloram?
As artes plásticas mesmo, desde Marcel Duchamp, se assumiram plenamente como contadora de histórias, importa menos a plataforma e mais o que ela tem, ou não, para dizer para o interlocutor. O problema justamente é que se tornou muito difícil participar deste diálogo e por isto é digno de nota quando nos deparamos com um artista que quer ser claro, hiperclaro e se esforça ao máximo para ser compreendido sem precisar de qualquer explicação prévia do que nos deparamos.
O hiperrealismo de Ron Mueck é assim, aparentemente fácil, mas cheio de nuances. As paisagens que ele instaura têm movimento, luz e histórias. A vista está lá, transcendendo a superfície e alcançando as três dimensões, sem necessidade alguma de intermediários. Basta admirar a cena e pouco a pouco ir construindo o enredo que se insinua através das roupas, dos acessórios, objetos e olhares que suas obras exibem em direção a um cenário que se projeta além da paisagem construída. É como se o artista convidasse você para completar a cena.
Logo na chegada do MAM, local que recebe a exposição até primeiro de junho, o visitante se depara com uma galinha gigante depenada pendurada por um suporte de ferro. A cabeça ainda está lá, incluindo uma leve penugem, insinuando uma breve humanidade para o ser. O resto do corpo, porém, já está todo depenado, pronta para o embalo e consumo. A cena em si parece ter o intuito de completar um quebra-cabeça, não a toa está em movimento, em um ponto intermediário do processo de manuseio da carne. Talvez o intuito seja lembrar que uma galinha de supermercado é, de fato, uma galinha de verdade. E, ao pendurar uma galinha, o artista começa a exposição dissertando sobre a humanidade, que será desnudada peça a peça a seguir.
Ao lado da galinha, um casal de idosos relaxam deitados em tom de contemplação. Um guarda-sol, o maiô da idosa e os próprios gestos dos personagens insinuam que trata-se de uma praia. O olhar perdido do homem deitado no colo de sua senhora se projeta no infinito, como que contemplando o ir e vir do mar. Já a mulher mira com atenção para ele, como que confirmando a intimidade que os unem àquele momento. Convido ao próximo visitante que visite a exposição para verificar se há anéis confirmando o matrimônio. O detalhe fugiu-me durante a apreciação. Será que eles eram de fato casados?
A humanidade é singela, mas também é violenta e cheia de contradições. Enquanto em um canto se projeta um senhor com óculos escuro e braços abertos flutuando em uma bóia desfrutando de uma piscina e um sol que não estão lá, um menino negro de calça jeans com as cuecas aparecendo olha com curiosidade para um ferimento que os finos rastros de sangue insinuam estar recém aberto. Ao que tudo indica, o menino ainda não sente a dor e ainda não sabe a gravidade do sofrimento que nós podemos contemplar. Dói mais em nós, ou mesmo no artista, que nele propriamente.
Difícil estabelecer narrativa para cada peça, todas elas insinuam cenas complexas, algumas que sequer consegui visualizar por completo. O que uma mulher nua envergando as costas de tanto carregar lenhas e gravetos poderia estar fazendo? A lenha certamente serviria para alguma fogueira, mas se havia necessidade de fogo, porque ela estava nua? E um senhor no meio de uma jangada, nu em pêlo, com braços cruzados, o que será que contemplava à sua frente? Pode ser que nem sempre a cena precise de um enredo complexo, pode ser que o artista goste de retratar o nu devido às suas formas e possibilidades. E, mais uma vez, as histórias estão ali, mas não são totalmente necessárias, não há necessidade de intermediários entre a obra e quem a observa.
Talvez o maior resumo da exposição seja uma cabeça, depositada no canto. Não se sabe se ele está em repouso ou morto. A nuca está aberta, sem conteúdo. Contemplamos a cena com o distanciamento de um ser sem conteúdo, tal como uma galinha, e imaginamos o que pode ou não estar ali. E a chave é justamente este distanciamento. O artista nos oferece situações, personagens e cenas reais, inexoráveis, porém, com o distanciamento necessário para que possamos olhar a humanidade de fora dela e, em determinado momento, lembrar que somos humanos, seja lá o que isto for.
Mas o que será ser humano? Basicamente ação e expressão, e a partir delas complete a cena.
Serviço
Exposição Ron Mueck
Museu de Arte Moderna RJ
Endereço: Av. Infante Dom Henrique 85 / Parque do Flamengo
até 1 de junho de 2014
Ingresso: R$14,00
Museu de Arte Moderna
Mais informações pelo telefone (21) 3883 5600