Muitas vezes, na minha adolescência, peguei um bonde para ver onde era o fim da linha. Encontrei assim uma forma de conhecer a cidade e tentar fugir dos aborrecimentos existenciais desse período turbulento na vida da gente. No fim da linha, todo mundo tinha que descer. Quando o bonde parava, o cobrador já ia insistindo para os espertos como eu que ali terminava a viagem e que todos teriam que pagar uma nova passagem para voltar ao Centro.
Esperando a hora de o bonde sair, eu ficava observando os motorneiros e cobradores sentados no chão, batendo papo, descascando tangerinas. Ao meio dia, jogavam bola num terreno baldio, almoçavam, cochilavam na grama. Um tempo depois, sempre com atraso nos horários, o bonde voltava para o outro lado da linha, com seu traçado definido e entediante. Sua tripulação seguia irritada com a fumaça, o barulho dos carros e a obrigação do trabalho.
Nessas viagens, apenas observava e sonhava, me deixando levar pelos pensamentos. Imaginava sempre o fim da linha como um lugar mítico, que quase deixou de ser urbe, para quase se tornar rural, uma zona neutra onde as leis da cidade e do campo se confundiam e se turvavam.
Antes de dormir, eu sempre pensava naquele lugar abandonado, aonde o último bonde da noite chegava vazio e o motorneiro e o cobrador se apressavam para chegar logo em casa, com medo da escuridão e do silêncio. Naquele ponto, tudo poderia acontecer, inclusive nada. Me coloquei muitas vezes na pele deles e tremia de pensar em sair pelas ruas sem iluminação. Nunca fui ao fim da linha à noite, mas admirava os que tinham essa coragem.
Quando o bonde, lá no início dos anos 70, foi trocado definitivamente pelo ônibus, imaginei o veículo se dirigindo para o encontro derradeiro, sem chance de retorno pela manhã. O Bonde levava o motorneiro, o cobrador e seus passageiros e não voltava. Os pobres viajantes ficavam parados lá, sem força para se deslocar da luz fraca que mal iluminava o ponto exato do final da linha. Para um lado, breu. Para outro, também.
Hoje, a vida ficou mais circular. Os ônibus vão e voltam da periferia urbana. Temos menos certezas, existem mais perigos pelas ruas, mais centros comerciais divulgando falsas liquidações. Ninguém senta no chão. Ninguém deita na grama. O medo se transformou, ficou mais real e percorre as esquinas da cidade com desembaraço.
No ponto final, um lugar mais distante ou mais perto, afinal ninguém sabe a sua hora de pegar o bonde para lá, vibra o Instante Absoluto.
João Knijnik é escritor, roteirista e Professor de História do Cinema