Os ofícios costumam gradativamente acabar na exata medida que perdem o sentido. A simplicidade do enunciado talvez esconda sua extensão. Quando me refiro ao sentido, quero dizer seu pertencimento e importância na sociedade. Como essa função se insere no espectro social do cotidiano? Como é assimilada na compreensão individual de cada pessoa?
O desencantamento do mundo ocidental ajudou a sepultar inúmeras profissões. Para me fazer entender, analisemos algumas funções que ainda persistem: os cobradores de ônibus, por exemplo, poderiam ser substituídos por catracas inteligentes. Em muitos países isso já é uma realidade e no Brasil, até onde sei, não foi possível por conta dos sindicatos. Caixas de supermercado já estão sendo extintos e trocados por sensores em diversas partes do mundo. O funcionalismo público poderia ser diminuído e realocado em muitas áreas, se fosse possível otimizar recursos e privilegiar a produtividade.
Independente do valor moral do enunciado e dos perigos que isso traz para a sociedade, muitas profissões foram, estão sendo e serão extintas na medida que não fazem mais “sentido”. E quando falo sentido, repito a palavra deliberadamente, não estou dizendo apenas do seu significado racional. No fundo, quando um serviço se torna útil somente pelo seu valor material, ela deu o seu primeiro passo para a sua extinção. Na exata medida que ele deixa de ser um ritual e se torna um processo, seu valor fica comprometido e torna-se substituível.
O Japão, em alguma medida, talvez seja uma das gratas exceções. A dimensão ritualística de sua sociedade consegue manter o sentido de inúmeros serviços que, em outras partes do mundo, caem no marasmo da repetição automatizada. Um sushiman seria em qualquer país ocidental um mero auxiliar de cozinha. Um praticante de Ikebana, talvez, um bom florista. As prostitutas, normalmente depreciadas em qualquer cultura, no Japão tinham, talvez ainda tenham, uma outra projeção, são gueishas. A própria indústria ganhou um outro significado após o famoso 5S, provando que este hábito tem também sua relevância produtiva.
Pois foi ao assistir o filme A Partida que cheguei a tal conclusão. É fascinante o retrato que a película dá a um serviço que parece persistir no Japão: a preparação do corpo para o velório. A tarefa parece trivial, no entanto há um complicador que é digno de nota – os corpos são embelezados na frente dos convidados , fazendo da prática uma espécie de liturgia. As sequências de cena que mostram o passo a passo do serviço são sensíveis e tocantes e por si só já valeriam a audiência.
Porém, a dramaturgia do filme não se resume a isso. Trata-se da história de um jovem que, por força do destino, torna-se “nonkashi”, ou seja, um preparador de corpos, após assimilar que não tem talento suficiente para o violoncelo. Assim, abandona Tóquio e retorna para sua cidade natal em Yamagata. Isso por si só proporciona uma perspectiva inteligente à trama. Afinal, principalmente para nós ocidentais, a arte talvez seja uma das únicas profissões que mantêm incontestavelmente seu aspecto simbólico. Há aí um dilema que muitas vezes nos deparamos em nossas escolhas pessoais, sobretudo para quem se devota ou se devotou a qualquer ofício artístico, seja ele qual for.
Após finalmente compreender o significado do que faz, Daigo tem um outro desafio ainda maior: se confrontar com o preconceito da comunidade e de seus familiares com sua profissão. Há um contraste nítido entre a aversão de seus amigos e parentes e o reconhecimento daqueles que utilizam o serviço, de certa maneira justificando a escolha do protagonista, mesmo com todas as dificuldades.
O enredo proporciona diversas surpresas agradáveis, algumas sutis e outras parte do contexto geral da história. Inclusive em relação ao protagonista, que gradativamente vai tendo que se defrontar com questões do seu passado, que são reveladas ao longo da trama. Assim, apesar do ritmo sereno e delicado, a película não perde o fôlego em nenhum momento.
Para os atores, diretores e gente do ofício cinematográfico, aconselho a prestar muita atenção na interpretação dos atores. Uma verdadeira aula. Conseguem dialogar com sucesso apenas através da expressão do olhar, economizando em diálogos desnecessários e elevando a qualidade da atuação e do filme como um todo. Talvez por isso, o filme é premiadíssimo no Japão e internacionalmente, inclusive com o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2009.
Creio que o filme vale por uma razão especial: trata-se de um verdadeiro aprendizado de como tornar nossas vidas mais significativas. É necessário valorizar cada ofício e perceber sua relevância, conferir humanidade. Só assim, compreenderemos a real extensão de nossas vidas.
Bogado Lins é escritor, roteirista e articulador do Literatura Cotidiana