Duas colunistas do Rio de Janeiro tiveram um surto coletivo e postaram colunas com mensagens ofensivas. Uma delas determinou como medida para amenizar as praias cheias de “hordas de jovens arruaceiros” uma espécie de pedágio restritivo. Alegou que em outras partes do mundo essa cobrança já existe. Já a outra, fez uma crônica que desejava ser bem-humorada a respeito de uma suposta estranha mania do pobre atualmente viver e desejar estar doente.
Até onde eu sei, quem tinha doenças sofisticadas eram os ricos. Tinham uma espécie de monopólio na hipocondria. Mas se antes a “gente diferenciada” chegava apenas até o Arpoador, hoje eles não apenas chegam no Posto nove, mas vão a Paris e Nova York nas férias e ainda fazem exames através do mesmo plano de saúde, inclusive no mesmo hospital. Em breve, pode ter certeza, terão as mesmas manias e psicoses e frequentarão os mesmos psicanalistas e psiquiatras. Talvez “escrevam o que querem” em suas colunas também.
Ambas as colunistas soaram extremamente inapropriadas, isso obviamente não é novidade para ninguém, mas o que me interessou no assunto, e no fundo me motivou a refletir sobre, foi porque ambas expuseram tão naturalmente suas opiniões? Digamos, primeiramente escreveram, não acharam por si mesmas nada ofensivo, passaram para editores, revisores e, supimpa, ambas foram publicadas em um dos veículos com mais repercussão do Rio?
O complexo de nobreza carioca não é segredo para ninguém. O carioca ainda sonha em um passado distante quando ele cantarolava O Barquinho Vai olhando o mar de Ipanema e vivia num enredo do Manoel Carlos. Botafogo já era em alguma medida uma terra distante a ser descoberta e o subúrbio e as favelas tinham como principal função abrigar a mão de obra que chegava uniformizada para trabalhar na sua casa, mercadinho ou boteco de bairro. No máximo, aceitavam ouvir o último samba enredo campeão da Sapucaí. Porém há um componente novo nesta química que não deu liga.
Após alguns anos de São Paulo tenho cá para mim que estou numa cidade tão ou mais preconceituosa que o Rio. Mas por algum motivo existe na Cidade Maravilhosa um conflito muito maior que existe por aqui. Ao que tudo indica, toda a metrópole paulistana se racionalizou de modo que o contato de uma classe social mantenha-se ainda em boa parte atrelado dentro de um circuito restrito de trabalho, vizinhança, comércio e serviços, de modo que dificilmente um rico encontrará “gente diferenciada” em seu círculo cotidiano fora do seu “lugar”. Mesmo as classes médias conseguem uma boa medida de isolamento a partir deste mecanismo, sustentado basicamente no convívio em locais privados.
No Rio de Janeiro, porém, as circunstâncias colaboraram para aumentar esta tensão social. Se por um lado as classes mais baixas melhoraram sua qualidade de vida, a “triste e linda Zona Sul” não acompanhou na mesma velocidade a dinâmica social. Muitos não passaram no concurso público e os empregos, obviamente com gratas exceções, não pagam esse estilo de vida idílico. A ilusão está acabando. Mas mesmo aqueles que com todas as dificuldades venceram, não tem diante de si a mesma Cidade Maravilhosa.
Existe uma outra cidade que fagocita essa “vila” que vai do Leblon a Copacabana, no máximo até o Catete, que num passado remoto vivia separada como que por um encanto divino.
Pois bem, esta cidade cheia de pessoas “sem classe” agora invadiu de vez, frequenta as mesmas ruas, trabalha nos mesmos lugares, frequenta os mesmos médicos e curtem a mesma praia. Não tem para onde fugir. Mas isso obviamente não é uma exclusividade do Rio, esse fenômeno já se projeta em maior ou menor grau para todo o Brasil. Os paulistas ainda se isolam nas suas ruas vigiadas e isoladas, mas em algumas delas, a ciclovia e o metrô já chegaram. Na ocasião, eles tampouco resistiram à tentação de externar seus preconceitos publicamente. Costumam apenas serem mais recatados e, no fundo, só externam essa vicissitude quando eles invadem um espaço que eles consideram de sua posse, como seu shopping, por exemplo.
De fato, praticamente todas as cidades brasileiras são mantidas por uma ilusão. Vivem ao redor de ruelas, cortiços, favelas e pobreza e, de alguma forma se alimentam dela. Mas cada vez mais o movimento contrário se amplia. Uma fagocitose social está a caminho, e isso pode ser muito bom, ou muito ruim, a depender do andar da carruagem. As fronteiras da cidade podem se ampliar, englobando espaços até então isolados, porém pode exacerbar ainda mais esta tensão social, algo que se torna mais provável com o cenário atual de baixo crescimento econômico e desigualdade social.
No final das contas, não há alternativa, se você quer de volta a sua “praia”, antes vai ter que cuidar de uma cidade inteira ao redor dessa pequena redoma quebrada em que cada um de “nós” vive.