Um bom protagonista costuma ser a chave para o sucesso de um romance. Sua definição costuma ser um dos passos fundamentais para angariar leitores, ou espectadores, no caso dos filmes.
Uma boa dose de messianismo é sempre um bom norte para se começar uma história. Repare que boa parte de livros ou filmes de ação e épicos, principalmente aqueles que se passam em universos incríveis, utilizam-se da figura do escolhido para ser o centro do plot. Antes de tudo, um povo oprimido por uma força muito superior, daí surge um homem com talento incomum, uma certa inconformidade as regras vigentes e com uma índole incontestável. Invariavelmente, estamos falando de um órfão, para justificar que, bem, uma mãe virgem seria forçar a barra.
Há algumas vezes que o escritor faz uma escolha ousada: seleciona um protagonista real para fazer parte da sua narrativa messiânica. Agora e quando o messias é o próprio messias? Aquele que serviu de imagem e semelhança para todos os demais? Pois bem, foi isto que José Saramago fez no incrível e salvador Evangelho Segundo Jesus Cristo, um dos seus livros mais famosos e talvez menos lidos.
Não vou mentir. Demorei anos para iniciar de vez a leitura. O primeiro capítulo, ao mesmo tempo genial e prolixo, me emperrava a fluidez para avançar até o próximo. Trata-se de uma descrição minuciosa do “A Grande Paixão” de Albrecht Durer, tal como se o próprio Saramago desenhasse a gravura. Porém, ao conseguir desenhar o quadro na cabeça, após leituras e releituras, avancei e engrenei a história.
A história começa antes mesmo de Jesus nascer. E já começa com uma Liberdade poética incrível sobre como Maria engravida de Deus e José, simultaneamente, vamos dizer assim. A partir daí, o autor faz uma imersão na história, incorporando os costumes da época não apenas no cenário mas na própria narrativa, como se o narrador em terceira pessoa fosse ele mesmo parte do mundo em que se vive. Mais que as idiossincrasias do judaísmo, chama atenção ainda a descrição das localidades, completando a pintura do período e da história. Impressiona a riqueza dos detalhes.
Mas mais que a habilidade e destreza de Saramago com as palavras, e seu habitual desapego da pontuação, a narrativa impressiona muito mais pela forma que o escritor lida com a vida de Jesus, particularmente na grande lacuna da Bíblia. Saramago não vai muito longe, mas vai incluindo suas conclusões a respeito do assunto de maneira singela e encantadora, até de fato chegarmos aos grandes fatos, que de alguma forma gera curiosidade de como o escritor vai descrevê-los. Impressiona como um ateu consegue capturar o fantástico do mistério religioso e torna-lo tão palpável para os leitores.
Aliás, esta é a grande sacada de Saramago, conforme vai narrando a história, subitamente, uma reviravolta incrível ocorre na história. Uma que só poderia ter sido arquitetada por Saramago e que faz com que o final do livro ofereça uma grande e inesperada reflexão. Mas, óbvio, no spoilers, não vou contar os pormenores da manobra.
Creio que o mais importante em si, seja registrar que O Evangelho Segundo Jesus Cristo vale cada parágrafo de Saramago. E quem conhece sabe que me refiro nas suas extensas orações sem vírgulas, que são, muitas vezes, de tirar o fôlego, principalmente para colher pérolas e pérolas para ficar marcado na lembrança, a exemplo desta: “branco sangue que é a lágrima”.
Pois é, como diria o próprio autor, “…a história de Deus não é toda divina”.