Gostaria de fazer uma confissão. Algo impronunciável para quem durante anos tomou como identidade a apreciação de conteúdos culturais: ando preguiçoso. Para falar a verdade, talvez sempre tenha sido, mas creio que o fenômeno atingiu algo que sempre permaneceu intocável nos meus hábitos cotidianos: não consigo apreciar por mais de algum tempo, digamos trinta segundos, qualquer obra cultural.
Passo dias a fio sem música, não consigo assistir de maneira ininterrupta um filme e só consigo ler livros nos momentos de prisão do trajeto casa-trabalho-casa.
Pois bem, ocorre que a preguiça de acompanhar conteúdos extensos, talvez apenas os livros se salvem até o momento, tenha me acometido após anos e anos imerso na internet. E foi justamente ela quem salvou parte do meu ardor em acompanhar algum conteúdo pela “televisão” se é que isso ainda existe. O serviço de streaming é a única resposta possível para este novo mundo anywhere, anytime, anyplace. Mas ele também privilegia um formato que até então não estava plenamente acostumado. As séries, com seus cerca de 1h de conteúdo, ao mesmo tempo completo e sequencial, servem como uma dose perfeita de apreciação durante o tempo que você pode finalmente dispender entre um projeto e as horas de sono para o próximo.
E é este formato que se aperfeiçoou nos Estados Unidos e tange a perfeição com as novas desamarras da internet que é abordado no livro Homens Difíceis de Brett Martin. O autor justamente versa sobre o desenvolvimento criativo dos seriados norte americanos, por coincidência, durante o boom da tv a cabo nos Estados Unidos, capitaneado inicialmente pela HBO.
Mais do que os personagens e as tramas, o livro trata dos bastidores de criação e da ascensão dos famosos showrunners, autores que controlam salas de roteiro e direção e mudaram o jogo a favor dos roteiristas no cenário televisivo norte americano. Foi justamente esta independência em relação aos resultados iniciais que permitiu o risco de se ter personagens principais cada vez mais complexos e, como o próprio título diz, difíceis.
Este salto de qualidade é também um anseio, trata-se de um público cada vez maior que questiona o sonho americano e não acredita mais em heróis. Mais precisamente acredita num tipo particular de heroísmo, um anti-heroísmo a bem dizer, que se manifesta nos extremos quando não há mais alternativa. Ou talvez até haja, mas não seria fantástico simplesmente fazer o que dá na telha mesmo assim? Sabe aquele pequeno ditador que vive em cada um de nós e gostaria de se manifestar nos momentos de estresse? São personagens que “fazem o trabalho sujo” quando devem ou simplesmente querem fazer. Em um passado recente, seriam os vilões carismáticos e, de tão bem quistos, humanizaram-se e ganharam boas justificativas para fazê-los, as mesmas que exibimos em nosso subconsciente.
Sim, personagens difíceis que foram elaborados em fôrmas igualmente difíceis, durante processos penosos de risca faca entre roteiristas mediados por um roteirista de modo geral ditador e sanguinário que, além de uma big idea, ainda detém o mérito de personificar um show. Artistas, enfim, complexos, insuportáveis e irresistíveis. E o livro narra em detalhes os processos de séries de diversas emissoras, até chegar ao auge, em Albuquerque no clássico dos clássicos Breaking Bad.
O livro em si não oferece grandes sacadas para roteiristas e escritores que, como eu, esperava talvez um ou outro caminho das pedras para fazer´, quiçá, o próximo House of Cunha, mas deu em retorno um pouco deste entendimento da complexa rede de produção americana e a certeza, mais uma vez, que uma andorinha absolutamente não faz verão. E, ainda que cada vez mais bons conteúdos estejam sendo gestados por aqui, como faz falta um pouco deste ambiente de concorrência no marasmo do cenário televisivo brasileiro!