A natureza humana é cheia de falhas. Talvez seja por isso que vivemos em sociedade, para que um complemente a falha do outro. Nunca seremos perfeitos e, de alguma forma, a arte serve como um excelente artifício para extrair o que temos de melhor. Ou pior, simples assim. A arte é nossa possibilidade de potência. O mito do artista faz parte da própria essência da civilização, ainda mais desde que o individualismo se tornou parte integrante da nossa sociedade.
A individualidade dos governantes, que representavam o seu povo a partir da sua identidade, foi o início de algo profundamente maior, e que nem os faraós poderiam prever. No fundo, sempre precisamos nomear a nós mesmos, com o tempo, apenas, pudemos nomear mais gente. Pois bem, os governantes, e sua identidade, depois de algum tempo, demandava que o benefício de ser importante, único, extraordinário, em um certo momento pudesse ser alcançado por qualquer um: o artista.
Pois bem, com o tempo a individualidade acabou alçando o mito do artista e sua individualidade possível para qualquer pessoa que fosse agraciada com o talento. Sim, arrisco a dizer que a arte foi a primeira forma de meritocracia humana plenamente realizável. Artistas muitas vezes provindos de origens humildes se alçaram à corte, e sua absoluta separação daquele mundo cheio de regras os tornava especiais. Até hoje apreciamos histórias de artistas que desafiaram com sua ingenuidade, loucura e arrogância governantes e poderosos, mas a história que vemos é editada por outros artistas. A verdadeira sem dúvida não teve o mesmo glamour de filmes como Amadeus, Pollock e Marques de Sade.
Acontece que para brincar no play da arte, antes de tudo, tem que saber brincar. Cada época teve seus requisitos, mas o fato é que o tempo fez com que uma boa habilidade não era suficiente. Precisavam muito mais. Afinal, o que é a arte senão contar uma boa história? Mas para contar uma boa história é preciso explorar caminhos inexplorados, percorrer ruas e estradas obscuras, muitas vezes fazer as escolhas erradas e, mais importante, bancá-las. Em outras palavras, a arte é um esporte da subversão do modus operandis anterior. Sim, cada artista precisa suplantar o recorde do que veio antes, ou criar sua própria modalidade e virar referência. Caso contrário, você nunca chegará no passo adiante que exige a arte. Mas esta atitude, absolutamente transgressora, cobra o seu preço.
Nenhum artista é inocente.
Lembro dos tempos de atendente da saudosa da Livraria Cultura onde atendi alguns artistas e pude me decepcionar com algum deles. Um ótimo exemplo é o poeta Thiago de Mello. Sua atitude com os vendedores era de um autoritarismo digno de um déspota. Por até então não tê-lo lido, nunca pude apreciar seus poemas da mesma forma. Pensar que aquele ser asqueroso escrevia algo como: “Por decreto irrevogável fica estabelecido o reinado permanente da justiça e da claridade, e a alegria será uma bandeira generosa para sempre desfraldada na alma do povo.” E, pasmem, ao entrar em uma livraria sua única preocupação verdadeira era saber que o vendedor soubesse quem ele era e onde estava o seu livro, e com uma exaltação como se estivesse lidando com subalternos, certamente percebe-se a contradição do discurso. Mas, antes de insistir em tal sentimento diletante, quero afirmar, após tantos artistas em meu convívio, afirmo: eu entendo, entendo mil vezes.
Nenhum artista é inocente.
Destaco a frase em parágrafo, repito ainda, para que ela se projete. Mas no fundo, ela está errada. O artista é inocente demais. Sua transgressão na sociedade é um ato de coragem que qualquer pessoa que acredite que tem algo a perder não seguiria em frente. O artista não tem pudor, e sua transgressão muitas vezes cobram um preço alto, de formas tão díspares que é simplesmente impossível catalogar. Porém, a persistência do artista de testar a própria sorte é incrível. E, na minha parca experiência, esta é talvez a característica que define o artista. Esta impulsividade paciente em continuar por anos a fio em se foder por algo que ele acredita, ou gostaria de acreditar que talvez dê certo, ou nunca deu, é sua natureza.
O artista, de verdade, cria sua própria moral e você pode ter certeza que será diferente da maioria da humanidade. O artista constrói a sua liberdade a partir da sua visão exclusiva do mundo, que pode agrada-lo a partir de sua obra, mas nem sempre é facilmente compreensível para quem compartilha com ele o dia a dia da labuta ou sentimentos.E este mundo particular é tão diferente da convencional que com certeza se você conhecê-lo fora de um contexto, de amizade ou de admiração, pode simplesmente odiá-lo.
Falo um pouco de minha experiência própria, tanto em aturar artistas, mas de reconhecer que até hoje me aturem, mesmo não tendo o talento deles. O artista é, em sua essência, é um indivíduo elevado à potência com todo o horror e a delícia de ser e sentir demais a si mesmo.E, por isso, afirmo por experiência, o artista por excelência, não gosta de arte, mas de si mesmo.
E talvez seja isto que o artista tenha de mais lindo, e monstruoso, a individualidade elevada à potência de si mesmo.
2 Comentários. Deixe novo
Esse seu texto sobre o artista me lembrou de um texto de Zola sobre a arte (“Proudhon e Courbet”). Ele falava sobre si mesmo e sobre a arte com tanta autoridade! Algo realmente de belo, invejável e monstruoso.
Opa, vou procurar o texto para ler. Fiquei curioso.