Essa bela pergunta vem bem a calhar, ela faz parte de A ópera dos três vinténs de Brecht que em 1928 já realizara qual a instituição que mais lucra sobre a população no sistema em que vivemos. Mas mais legal foi a cena em que essa frase me veio à cabeça.
Estava passeando com minha salsicha – uma cadelinha de 13 anos… – como todos os dias, como um típico cidadão de bem, e enquanto ela se aliviava em uma praça me chamou a atenção uma movimentação. Deviam ser umas 9 horas da noite. Por entre as árvores fiquei observando, dois moleques, duas bicicletas no chão e eles com sede e discrição na direção de seu alvo. Meu primeiro impulso foi me esconder. Fugir talvez. Apenas estanquei. Observando a uma distância que me pareceu segura e que mantivesse minha imagem obscura.
Resolvi sair da cena a passos curtos, em silêncio, na medida que as quatro patinhas permitiam. Os garotos perceberam a minha movimentação. A praça é triangular na confluência de duas ruas, a um quarteirão de meu prédio. Do outro lado da rua em que estavam, há uma padaria, mas a entrada e saída dão para uma outra rua de modo que o movimento no trecho em que agiam era raro. Não havia ninguém além de nós, só o breu. Enquanto me afastava pela minha rua, os dois se mancaram e me observaram. De canto de olho fiquei naquela tensão, celular na mão dentro do bolso, corro? chamo a polícia?
Não.
Foi aí, nesse ponto que Brecht invadiu meu pensamento. Até parei na parede da primeira casa adjacente à praça para continuar vendo a ação dos meninos. Como já haviam julgado que eu estivesse ausente, continuaram com um instrumento de ferro nas mãos. Vez ou outra olhavam para todas as direções. Atacavam com pressa uma bicicleta daquelas estações de aluguel patrocinada por uma grande rede bancária. Eles não pareciam saber como retirar as peças que queriam da bicicleta. Era nítido aquilo misto de medo e prazer que sentiam.
Não posso negar, eu me vi naquela situação há uns 20 anos quando quebrei o garfo de uma bicicleta que não era minha. Sem dinheiro, eu e dois amigos decidimos trocar pelo garfo da bicicleta mais abandonada do bicicletário do prédio deles. A crosta de pó e poeira acumuladas fizeram a gente pensar que a bike era vermelha como a que quebrei, fato que facilitaria a camuflagem da substituição. O duro era fazer tudo isso com a magrela pendurada. Levamos umas duas horas.
No meio do processo ficávamos revezando a tocaia, olhando para todos os lados, naquele misto de medo e prazer. Sorte aquele tempo não ser comum câmeras de monitoramento… No fim, quando limpamos, vimos que era azul marinho, tentamos sujar o garfo vermelho para disfarçar, ficou uma merda. Nunca soube o que aconteceu, se o dono descobriu.
Voltando à praça, fiquei me perguntando, para que chamar a polícia? “Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão”, não é mesmo? De mais a mais, sabia o que os meninos estavam sentindo. Seria hipócrita da minha parte querer “fazer justiça”, ainda mais para defender um banco. No fim das contas, os meninos foram mais justos que eu fora, pelo menos estavam roubando de quem tinha muito, de sobra e que não sentiria a falta.
Voltei para casa pensando: nessa vida quem é ladrão mesmo?