O meu amigo Alexandre Palma me presenteou com um livro. Isso mesmo, aqueles de papel que deveriam ter desaparecido faz uns quinze anos. O mais engraçado é que não nos víamos fazia alguns meses, e antes do encontro derradeiro, datava ainda mais tempo. A ocasião e o regalo fez tirar a poeira do meu cérebro e começar uma leitura maior do que os usuais quatro, cinco parágrafos que nos chegam pela internet, carinhosamente apelidados de textão.
Sendo assim, debrucei-me por entre as cerca de 250 páginas para adentrar o universo do Black Rio, movimento que iniciou nos anos 60 e que deixou frutos até hoje para a cultura brasileira. Avancei um pouco mais da metade e já encontrei fôlego novamente para voltar a rascunhar minhas linhas depois de alguns meses em banho maria. Incrível!
O livro é um relato deste movimento que tive contato apenas de maneira residual, o Black Rio, que se iniciou nos subúrbios do Rio e com insistência ganhou o Brasil e a Zona Sul. Mas veja bem, essa perseverança não visava desfilar por Ipanema ou lotar os clubes aristocráticos da elite. Sua maior pretensão era encher casas de shows e colocar os blacks para dançar uma música, mais que isso, um estilo, que eles se reconheciam.
Não havia nada político no movimento, mas havia um orgulho que assustava. Os blacks – negros, pardos, mulatos, morenos e até brancos que por um motivo ou outro estavam no lugar certo, na hora certa – queriam celebrar o orgulho de ser negro, de ser suburbano, de ser o que eram.
Rapidamente o movimento ganhou a antipatia da classe média. Coincidentemente, tanto a direita, quanto a esquerda, se assustaram com o fenômeno e por motivos muito próximos, o rejeitaram. Ambos queriam que os negros se distanciassem da postura altiva e combativa dos negros norte americanos. Enquanto uma queria a unidade do Brasil, outra monopolizava o direito da revolução. Ainda estavam encantados com o discurso de Gylberto Freire a respeito da suposta miscigenação paz e amor brasileira.
Pouco a pouco, aquela sonoridade ganhou a todos. Conquistou os morenos, mulatos, mamelucos e até brancos das multicoloridas periferias e favelas, como meu amigo César, amigo branquelo cinquentenário de olho azul que cresceu no Morro do São Carlos e vivia lembrando de seus tempos de baile black. Expandiu-se a ponto de chegar nas elites, tanto por meio das pistas de dança, quanto das novelas e gravadoras, que disseminaram este estilo de vida. E mais uma vez, a Zona Sul teve que reconhecer que quem mandava naqueles palcos eram os negros.
A leitura rapidamente me fez relembrar o debate, agora adormecido, do turbante. Será que o Black Rio sofreu uma apropriação cultural? Quando o movimento ganhou as gravadoras e a admiração geral, coincidentemente, alguns dos maiores artistas do gênero se projetaram para o Brasil: Luiz Melodia, Jorge Ben e o hoje querido Tim Maia. Sem contar a banda Black Rio que teve até projeção internacional, que só não foi maior por conta de um boicote da gravadora, pressionada pela ditadura.
Muito mais que expoentes, creio que o mais importante é observar o quanto o orgulho de ser negro foi assimilado culturalmente. De tal forma que houveram avanços importantes em relação ao combate ao racismo. O que não significa obviamente que não seja necessário muito mais. A questão é que este orgulho não foi ampliado e inspirou ainda mais pessoas, foi porque não foi disseminado o suficiente. E é exatamente esse o ponto.
Quando James Brown cantava Say it out loud, era para ser ouvido. Quanto mais samba, jazz, hip hop, soul, funk e turbantes houver na sociedade, menos racismo haverá. Se uma criança dança hip hop, usa turbante e compra um boneco do Ray do Star Wars, muito provavelmente ela não seja racista.
O afastamento que se advoga em relação a alguns símbolos e discursos assemelha-se a um certo purismo que durante muito tempo buscou isolar manifestações culturais étnicas de influências externas. O esforço em conservar as coisas exatamente como elas são, ou supostamente deveriam ser, é o primeiro passo para o envelhecimento de uma arte. A vivacidade de uma cultura está justamente no seu compartilhamento e transformação. E a tão medonha indústria cultural é apenas um reflexo disso, justamente por visar o lucro, afinal se ela não chegar nas pessoas, não volta o dinheiro, simples assim.
Admiro que o movimento negro seja combativo. Certos privilégios não são concedidos sem lutas, afinal o privilegiado não costuma abrir mão facilmente dos mesmos. Mas certamente não é se fechando que se vai ganhar essa luta, mas se abrindo, para que cada vez mais inspire pessoas.
E a cultura, neste sentido, tem um papel fundamental de mais de 16 toneladas.
Get Up!