Já reparou que muitas das nossas amizades duradouras surgem no período da adolescência? Minha hipótese é que nosso senso crítico não é muito desenvolvido, daí aquelas características chatas dos amigos do peito passam batido e, vinte anos mais tarde a gente acaba se acostumando. “Ele é assim mesmo mas é meu amigo”. Já o pessoal que você conhece depois cai no senso crítico implacável logo de cara. Nada passa. E verdade seja dita, somos chatos por natureza.
Solano é um desses caras chatos que eu conheci nesse nebuloso período da adolescência. Ele deveria ter uns 17, talvez 18 anos, dois a mais que eu. A recíproca era completamente verdadeira, eu também era chato à beça o que, nesse caso, tornou a amizade benéfica mutuamente. Somos amigos desde então, e desconfio que, mesmo com a distância, cada vez mais.
Em toda a amizade há sempre um fio condutor que une as pontas em torno de um interesse em comum. No nosso caso foi as artes, inclusive nos conhecemos por uma de suas ideias, um coletivo chamado Factotum que iria revolucionar o Parque dos Patins na Lagoa e ainda nos descolar uns trocados vendendo nossas obras juvenis. Parecia possível para a gente, mesmo que fossemos encher o saco dos frequentadores do parque para comprarem poemas e rabiscos, entre o revolucionário e o chato. Mas, talvez por sorte, o projeto ficou apenas em duas reuniões, uma delas em minha casa, que teve de mérito me aproximar de Solano.
Sempre fui muito exigente, meus amigos sabem disso, e por isso tenho segurança para afirmar que Solano é um gênio, e desde aquela época. Gênios porém tem “geniosidades”, essas idiossincrasias que tornam as pessoas simultaneamente incríveis e insuportáveis, num limite difícil de separar. Sua produção artística surge sem muito direcionamento e organização. Quase que por sorte mesmo. Algumas são maravilhosas, outras boas, muitas são apenas chatas. Porém isso não importa para um artista, afinal se tem uma coisa boa em sê-lo é que eles sempre são lembrados pelo seu melhor. E eu sempre o admiro pelo que ele oferece de melhor para mim e para o mundo.
O que porém me fez ser amigo de Solano e não apenas um admirador de sua arte, foi sua benevolência comigo. Mesmo com seu talento proeminente, sempre teve paciência para prestigiar meus textos ainda em processo de apuramento estético, devaneios das minhas verdades diletantes da adolescência e da juventude. Mas isso talvez tenha sido o mais fácil, afinal foi Solano quem me ajudou a segurar a barra das minhas aventuras amorosas intensas que oscilavam entre a completa paixão e desilusão. Agradeço a ele demais por isso, mais que isso, o amo.
Aos gênios, muitas vezes o cotidiano não combina com suas trivialidades, então acredito que o mundo ainda esteja a procura do lugar para sua arte. Ocorre que vivemos um tempo estranho onde torcedor discute contabilidade do clube, empresários são os novos ídolos e artista bom é aquele que escreve projeto para Lei Rouanet. O mundo está chato, acho que porque tem gente normal demais.
Por isso, Solano é meu amigo. Dentre as genialidades e insuportabilidades cotidianas, ele ainda é uma pessoa que posso compartilhar minhas chatices, piadas babacas e uma cervejinha despretensiosa no lugar que for, agora em família. Mas sobretudo porque, além do amor da amizade, o admiro demais. Ele me lembra que o mundo é muito mais do que ídolos de balanços financeiros e artistas estatais. Ele é um artista de verdade.