Jorge era o nosso gaúcho preferido. Sua longa cabeleira contrastava com a entrada que revelava uma calvície em desenvolvimento. Como todo representante do sul, as pessoas diziam que o varão era macho, até mesmo debaixo de outro macho. Sim, os amigos de minha mãe faziam piadas, afinal ele era gaúcho. Frequentemente, na roda estava Isaías Isaac, um negro, homossexual e com um nome que poderia muito bem ser de um judeu. Ele costumava se designar frequentemente- me perdoem, ele é que dizia – pobre, preto, viado e judeu. O estereótipo perfeito para servir como assunto para os amigos de minha mãe que se reuniam para beber e falar besteiras. Enquanto ele, Isaías, ficava a caçoar o nosso bebedor de chimarrão de estimação. Eram os anos 90.
Por sua vez, Jorge adorava fazer piadas de argentinos. A rixa sulista com os vizinhos mais ao sul era coroada com diversas piadas que ridicularizavam os Hermanos por sua suposta, em alguns casos comprovada, arrogância e pedantismos. Minha quase prima argentina, filha da minha madrinha, Maria Eva, escutava e ria das anedotas. Mas Jorge não se restringia aos portenhos, também fazia piadas com homossexuais, ao lado do Isaías inclusive, e sua suposta vitima eram os Pelotenses.
A história tem uma explicação para o caso dos Pelotenses . Dizem que eles são chamados de viados porque eles dão o cu… Não, não, não, pelo amor de Deus, essa é apenas uma piada chula. A verdadeira é que, em outros tempos, os ricos fazendeiros de Pelotas enviavam seus filhos para estudar na Europa e, ao retornarem, traziam costumes refinados que frequentemente eram ridicularizados pelos locais. De alguma forma, a pecha pegou em todos os gaúchos que tinham essa fixação pela própria masculinidade. Caso semelhante ocorreu com os campineiros, que eram ricos fazendeiros de café. Mas isso é outra piada, digo, história.
A origem dos estereótipos ajudam a explicar a origem das chacotas e relativizá-las, mas apenas no seu aspecto mais superficial. O riso tem uma raiz mais profunda dentro da natureza humana. O hábito de rir de alguém por conta de seu pertencimento a um grupo social é algo próprio da essência do riso. Algo humano, demasiadamente humano.
Do que rimos? Essa foi a pergunta que intrigou muitos filósofos. Gaston Bachelard, o que parece ter melhor definido o trâmite, conceituou o risível como algo derivado da própria humanidade. Rimos de coisas, por assim dizer, humanas. Você, por exemplo, já riu de uma paisagem? Aposto que não. Mas se riu, algum dia, é porque identificou nela um olhar, um sorriso, algo humano. Assim como quando rimos de gatos e cachorros, estamos na verdade rindo de algo que nos lembra alguma humanidade qualquer.
Mas não é qualquer coisa humana que rimos. Mas de uma coisa em particular, algo que se ressalta, se projeta, se destaca, como em uma caricatura. E para descobrir o que é isso exatamente, temos que voltar ao instinto mais básico do riso e lembrar da cena cômica mais clichê mas que frequentemente sempre traz o escracho. Uma pessoa caindo, por exemplo. Porque rimos de sua desgraça? Simples, rimos do inadequado. O adequado seria essa mesma pessoa seguir seu rumo natural. Porém, ela caiu. Talvez estava bêbada, chateada, triste, mas isso não importa para o riso, a não ser, é claro, que seja uma razão ridícula para ele ter caído.
O que é inadequado? Tudo que dentro de uma comunidade, nosso de preferência, foi estabelecido que deveria ser de outra forma. Alguém, ou alguns, estabelecem que não deveríamos ser mãos de vaca, arrogantes, afeminados, chatos, burros por isso utilizamos esses estereótipos para denegrir as pessoas, ou grupos, que odiamos, e, muito provavelmente, tememos. Por isso, o riso ecoa tão bem em um grupo, é uma confirmação que você faz parte dele. O riso frequentemente representa uma afirmação para um e uma negação para outro. Mas são apenas estereótipos e o poder, do estereótipo, é ser sem história. Quanto mais conhecemos a triste narrativa do porquê alguém fez algo ou sentimos como uma pessoa sofre simplesmente por ser o que ela é dentro de uma sociedade preconceituosa, o riso desaparece. A compaixão é inimiga do riso. O riso é social. É humano. É cruel. E por trás dele, ecoa o quão ridículo nós próprios somos, os autores.
E aí retornamos a piada. Será que ela tem lugar em uma sociedade plural e democrática? Talvez, dentro de uma maturidade de compreender os seus limites. E mais importante, o nosso lugar. Os tempos mudaram e nunca retornaremos àquele momento anterior. Muito bom que seja assim, mas o riso sempre existirá. Como utilizá-lo? A solução do palhaço é incrível. Rir de si mesmo é sempre uma forma de superação e aprendizado. Mas será a única?
Porque ríamos tanto da pessoa que amamos? Porque, no fundo, podíamos. Os estereótipos de nossos amigos são queridos, só os tornam ainda mais interessantes, amáveis e, por que não? Engraçados. No fundo, rir pode ser um desprendimento da seriedade da vida. Afinal, somos todos ridículos. E talvez reconhecer isso é que pode nos tornar ainda maiores.
Agradeço aos meus amigos por serem tão ridículos e me lembrarem, sempre, o quanto eu sou também.