Imagine uma turma de adolescentes entre o ensino médio e os desafios inerentes a esta idade: namoro, amizade, falsidade, sexo, drogas, dentre outros. Então pense em um professor ajudando esses jovens se encontrarem em seus caminhos de uma forma bem descontraída e leve. No Brasil, o nome dessa série seria Malhação, que se repete a 25 temporadas. Mas na Espanha ou mais precisamente na Catalunha, estamos falando de Merli. As semelhanças acabam por aqui. Se aqui a academia era para malhar, lá pensa-se na academia que gerou o pensamento, a filosofia, a partir de um professor diferenciado, ele mesmo, o Merli, que vira a escola de cabeça para baixo.
A filosofia serve como mote para nortear os capítulos da série, de modo que cada uma se baseia em um pensador. Muito mais, porém, que a temática da sala de aula, o próprio roteiro é desenhado para representar os pensamentos, criando situações onde os personagens incorporam conceitos apresentados durante a aula.
Porém, limitar o seriado a um Mundo de Sofia televisivo juvenil talvez não seja suficiente. Afinal, o próprio Merli possui uma complexidade que o torna ao mesmo tempo admirável e repulsivo. Sua forma de lidar com a família, suas finanças e, a bem dizer, toda a sua vida pessoal, o tornam um anti-herói perfeito. O ator ajuda com sua postura arrogante e simultaneamente carismática, que são esbanjadas conforme a narrativa exige.
A turma de personagens juvenis são ainda mais interessantes, não tanto pelo que são individualmente, mas pela posição que ocupam em sua turma, o seu papel social. A narrativa explora constantemente as diversas situações possíveis entre eles: amizade, descobertas sexuais, homossexualidade, traição, bullyng, solidão e todo o caldeirão que a juventude põe em ebulição. De certa forma, relembra aspectos da antropologia americana que estuda a sociedade por meio de papéis sociais que se estabelecem e se repetem continuamente.
Obviamente, as contradições são exploradas no enredo de modo a tirar os personagens do seu lugar comum, inverter os papéis. Sim, estamos falando de um clichê, tal como o pior aluno da escola virar o melhor de filosofia, mas honesto o suficiente para ser crível. Há outros clichês e outros, porém não chegam a comprometer a qualidade da série, talvez pelo fato de destoar do usual das séries americanas e nos oferecer um ritmo diferente de apreciação das viradas do roteiro.
E talvez o que mais chama a atenção é justamente isso, essa possibilidade de se apreciar uma nova perspectiva, sem cair nos jovens malhados, e tampouco nos besteiróis americanos, proporcionando uma visão catalã de dramaturgia. E é aí que outro aspecto se destaca, uma série feita por catalães e para catalães. Nada de tomadas de pontos turísticos, arquiteturas, praias ou qualquer aspecto que se destaca em relação à beleza da cidade. As cenas privilegiam os lugares que os personagens usufruem de fato, em especial a própria escola, deixando de lado o recurso fácil de explorar as belas paisagens da turística Barcelona.
Para colaborar com esse clima, a sonoridade do catalão é bastante interessante, o que acaba nos transportando para o clima da cidade. Essa língua, que não é espanhol nem francês, nem português, tampouco italiano, mas um pouco de todas essas, emana uma brutalidade quase simpática. É, enfim, mais um atrativo para nós conhecermos uma Espanha, além da Espanha – que os catalões não me ouçam.
Uma excelente pedida para sair do lugar comum do algoritmo do Netflix. Ou, quem sabe, ele mesmo seja um resultado dele? Algo a se pensar.
Bogado Lins é escritor, roteirista e maratonista de série.