Eu sou carioca. Mas não sou um carioca convencional, além de nascido na “linda e triste” Zona Sul, sou loiro de olho azul. Isso tem algumas vantagens, mas tem desvantagens também. Lembro de sair na rua sozinho, afinal as crianças andavam sozinhas nos anos 90, e ser o alvo preferencial dos pivetes. Era o “alemão”, e isso numa cidade que não lidava muito bem com eles. Já tinham até composto aquela que hoje é um clássico da nostalgia funkeira ” nós com os alemão vamos se divertir”.
Talvez por ter desenvolvido um senso de autopreservação ou por ter tirado a sorte grande, sofri meu primeiro roubo apenas muito tempo depois. Por que? Bom, o dia a dia no Rio desenvolve um certo savoir-faire que te deixa preparado para situações adversas, um eufemismo para uma guerra civil em plena ebulição. O código de quem fala mais alto é o normal, a norma das ruas da cidade perigosa. Se alguém te ameaça, o natural é ser ainda mais ameaçador. Seja no olhar, no gesto e, principalmente, no palavreado. Talvez hoje a escalada de violência esteja ainda maior, mas durante minha juventude boa parte dos assaltos e assédios poderiam ser evitados por uma atitude, falando mais alto que o agressor. As vezes, até, o embate físico era inevitável. E isso, se aprende nas ruas o quanto mais é necessário. Minha história foi um amplo aprendizado nesse sentido. Idas e vindas na vizinhança, ou no ônibus rumo ao colégio, safando-se da eminência de ser assaltado.
Esse jeito meio malandro, meio agressivo se projetam para além das ruas, becos e vielas. Ele se impregna nos espaços coletivos e até mesmo dentro de casa. Lembro-me de quando ingressei numa escola federal de alto nível graças a ser um nerd irremediável. No primeiro dia de aula, tive que enfrentar a intimidação de um aluno repetente, dois anos mais velho. Mais uma vez, tive que me fazer de mais perigoso do que ele, com olhar fixo e levemente insano. Prefiro não contar o que lhe disse. O que posso dizer é que depois o respeito mútuo ocorreu e, se não éramos propriamente amigos, nunca chegamos a brigar, para minha sorte. Acredito que se encontrá-lo novamente hoje, provavelmente nos trataremos como dois conhecidos que há muito não se veem.
Esse hábito impregna de tal modo que o natural é você reproduzir e se orgulhar dele. Quando conheci um primo de um amigo, resolvi contar as peripécias das ruas do Rio e do quanto ele tinha que se precaver e ficar atento. Bom, e se safando de uma coisa ou outra com minha assistência, ele poderia usufruir do melhor da cidade maravilhosa, seja lá o que isso poderia significar com 13 ou 14 anos. Logo depois, o menino teve uma diarréia de medo. E eu? Bem, eu ri. Não tinha qualquer compaixão para compreender que essa cultura do enfrentamento não pudesse ser algo circunscrito ao Carioca Way of Life.
Muito mais tarde, ao chegar na juventude e circular mais pela cidade nas praias e avenidas, frequentemente era abordado em inglês ou em um portunhol improvisado oferecendo algo a se vender ou simplesmente pedindo um qualquer. Era nesses momentos que exibia com orgulho o meu sotaque carioca rasgado e treinado nas ruas e vielas que constrastava com o jeito esquisito de se vestir e de me portar. Olhando em perspectiva, eles realmente não tinha como saber. Os xsss e rrrsss rasgado dito em alto em bom tom, além de assaltos, me salvou de pagar mais caro pelo mate, biscoito Globo e qualquer mercadoria, além, claro, das corridas de táxi.
Esses trejeitos e exageros acabam entrando em perspectiva ao habitar uma cidade como São Paulo. O tom mais alto da voz, um apego descomunal aos pertences, a ponto de não deixar a mochila longe do corpo ou a roupa sozinha na praia para se banhar; e até mesmo um hábito de enfrentamento ao menor sinal de interpelação soam muito mais ridículos e desproporcionais. Perdoem-me, fui forjado assim. Os cabelos loiros,os olhos azuis e o jeito atrapalhado na cidade morena e cheia do gingado sempre foi um estigma a ser superado. Ainda mais em uma cidade repartida, onde a geografia ao mesmo tempo divide quem tem tudo de quem nada tem, mas paradoxalmente junta.
Certamente um dos traços dessa divisão está na pele. Mas se criava dificuldade para mim, que era o “alemão”, nem quero entrar no mérito de quem está do outro lado dessa geografia. Enquanto ficava atento para manter meus pertences, o mundo de quem nasceu a alguns quarteirões e com a pele escura era uma luta pela vida. Sem qualquer exagero. Eu era um sortudo de ter que defender meus bens e não a minha existência.
Por isso, as marcas do conflito carioca, mesmo desigual como tudo em nosso Brasil, chegou num ponto em que ninguém se salva. Nem eu, o alemão. Uma coisa aprendi à ferro e fogo nas ruas da minha cidade, com esse alemão aqui ninguém se mete. Desculpem-me, fui forjado assim.
3 Comentários. Deixe novo
Adorei, muito bom!
Obrigado Helen
🤷🏼♂️