Tem algumas situações da minha vida engraçadas, histórias mesmo. Uma delas é que eu tinha um armário muito bem localizado.
Acontece assim, calhou de minha avó e minha mãe falecerem para eu ser herdeiro de um apartamento no Jardim Botânico. Quem não conhece, é um bairro bem charmoso do Rio, próximo da Lagoa Rodrigo de Freitas. Porém, minha avó tinha quatro irmãos, o que a dava direito a um quinto do riscado. Além disso ela tem dois filhos – meu pai e meu tio. Pois bem, meu pai ficou com a metade do um quinto da minha avó. Posteriormente, quando minha mãe faleceu, a metade do um quinto do meu pai se dividiu pela metade, para depois dividir-se novamente por três partes. Resultado dessa conta complexa? Eu tinha um sessenta avos – ironia avos com um acento vira avôs – desse apartamento. Considerando que ele tem algo em torno de 100 m2, isso dá cerca de um metro e meio quadrado, uma medida similar a um armário – porém muito bem localizado.
As pessoas costumam rir dessas piadas, e eu costumo contá-las para relaxar e amenizar o turbilhão de emoções que reside em minha alma. Algumas vezes mais, outras menos mas elas estão sempre aqui e a família seguramente é um gatilho para liberar: raiva, angústia, decepção, alegria, esperança, afeto, tristeza – tudo junto e misturado num caldo que as vezes sobressai uma ou outra, ou muitas.
E esse apartamento traz lembranças que desencadeiam emoções. Lembranças do meu avô já mais velho me contando as histórias de sua família na sala. Histórias das ruas, avenidas e cidades que se chamam Lins, da origem supostamente austríaca da nossa linhagem, do parente interventor, uma espécie de governador, de Minas Geraes -na época era com “e” mesmo. E, também , um pouco antes dele falecer, de pegar meu filho no colo. Isso tudo é óbvio que é só um resumo de tantas conversas com meu avô cada vez mais surdo e cego mas com uma memória impressionante. Uma das oportunidades da vida para aprender a ouvir mais do que falar que ainda não assimilei completamente. A última lembrança foi depois do seu falecimento quando fiquei em uma das minhas férias com minha família quando meu filho tinha acabado de nascer no período que o apartamento estava desocupado.
Lembranças essas que se traduzem em objetos que, ao abrir esses armários empoeirados, se revelam. Álbuns de fotografias, cerâmicas, talheres, cartões postais, taças, bules, filmes, livros. Em um destes armários descobri os exercícios escolares de geometria da minha avó. Objetos que pouco a pouco vão se perdendo, ou se achando em um novo significado, por uma razão ou outra. Um destes objetos é uma mesa que agora está na minha casa e que residia nesse apartamento.
Depois de anos de indas, vindas e reviravoltas, hoje me despeço oficialmente do meu pequeno armário na Rua Nina Rodrigues 49 apt 101. As lembranças agora estão livres para se ressignificarem, permanecerem ou simplesmente se sedimentarem no meu subconsciente. E o armário está livre para guardar novos objetos dos novos moradores que chegam e, claro, novas lembranças. Espero que eles sejam felizes aqui, e que também vivam todas as emoções complexas que uma existência humana nos permite – afinal são essas emoções que criam grandes histórias e eu não poderia deixar de desejar menos que isso para quem chega.
E, a você, Rua Nina Rodrigues 49, meu muito obrigado por tudo.
2 Comentários. Deixe novo
Boa , Marquinho . Gostei muito , até pq la morei durante 04 anos entre dois casamentos e onde minha Carol nasceu . As memórias não se apagam até do cheiro da dama da noite que minha
avó, sua tataravó plantou nos anos 50 . Hoje em dia em que as transformações visuais são aceleradas, termos um imóvel que faz juz ao nome é extremamente confortante ,pois dispara as nossas lembranças, boas ou ruins, não importa. Ao focar que seu quinhão foi de 1/60 avos é interessante pois vc tb contribui , haja visto que este apartamento foi comprado pela minha mãe, para abrigar minha avó, sua tataravó,com o pequeno salário de professor, tirando de todos os 04 irmãos, há época solteiros , possibilidade de termos mais recursos para nosso conforto.
Abç
Opa Obrigado Urbano por ler o texto.
Todos tem o seu quinhão de lembranças. Isso é bom, mostra que é um lugar cheio de vida. Fico feliz de terem cedido ao meu avô para morar lá também.
abs