Ao analisar os traços infantis que Paul Klee exibia em seus primeiro desenhos, senti-me confortado. Meus desenhos poderiam muito bem estar ali expostos, quiçá rodando o mundo e presente em museus e coleções particulares de prestígio. Mas é claro que não, o impacto inicial seria apenas uma demonstração que a arte, quanto mais avança, não se limita ao talento – e é justamente aí que nasce as obras-primas.
Ver uma exposição de um artista é ter um privilégio. Ter a oportunidade de ver além do traço em si que sozinho não diz muita coisa. Ser conduzido por uma viagem que, a partir do olhar do curador, conta uma história. Algumas de suas pinturas, minha filha observou, poderiam ser obras delas – ela tem 8 anos e até desenha bem mas… enfim. Porém, e isso que importa, o conjunto da obra prova que sua obra vai muito além dos traços infantis, quase primais, de algumas das obras expostas. Como bem disse o filósofo e enólogo Roger Scruton, o teste cego de um vinho é uma inutilidade. O sabor de qualquer coisa não se limita a fatores técnicos, mas corresponde a uma história que se constrói em relação ao todo que inclui tempo, espaço e discurso.
Costumo dizer que o artista tem uma vantagem que nós meros profissionais não temos. Invariavelmente, são sempre analisados pelo que fizeram de melhor. Ao passo que nós que trabalhamos, até mesmo com criação, vivemos a maldição do “Como se Fosse a Primeira Vez”. Não importa o seu sucesso, se você falhar uma vez, pode afundar uma relação com um cliente, ou até mesmo a sua carreira. Por outro lado, e com gosto, veja os artistas, muitas vezes uma obra basta para entrar para sempre na admiração de uma vida. Costumo lembrar Clarice Lispector, se A Hora da Estrela é uma obra-prima, temos uma Legião Estrangeira que no máximo é mediano. Podemos incluir seguramente Machado de Assis nessa lista com Memórias Póstumas de Brás Cubas e alguns romances no início de carreira sem grande brilho.
Voltemos a Paul Klee, o nosso tema. Apenas uma obra me valeu a exposição inteira. As janelas do Komposition mit Fernstern pareciam, ao invés de uma abertura, um fechamento. O mosaico de fenestras e as cores fortes pareciam sugerir o contrário de um olhar , mas uma escuridão que o labirinto da multidão traz a partir da experiência da modernidade. Arrisco afirmar que essa obra resuma um pouco a mensagem do artista como um todo. Viver em plena espiral do início do século XX, que parece cada vez mais longe. Talvez seja algo que o próprio artista vivenciou internamente ao pintar essa obra, após uma viagem a Tunísia. Segundo o prórpio artista: “A cor tomou posse de mim; eu não mais tenho que persegui-la, pois sei que ela está presa a mim para sempre… A cor e eu somos um. Eu sou um pintor.”.
Ao vivenciar a transformação que passamos, com a digitalização, a inteligência artifical e tantas outras incertezas, frequentemente neglicenciamos as mudanças drásticas que nossos pais e avós passaram. E não há período mais conturbado do que o entreguerras. Além das transformações tecnológicas, que muitas vezes serviam mais para destruir do que para construir, a humanidade pode experimentar pela primeira vez experiências diversas de autoritarismo e numa escala até então inimaginável. E aí que o trabalho de Paul Klee, dentro da sua linha de tempo, é extremamente esclarecedor. Explico-me.
Ao observar suas primeiras obras, antes do artista Paul Klee, identificamos esse traço infantil que, no fundo, era apenas um subterfúgio de sua criatividade. Basta observar seu talento com retratos e outras pinturas figurativas presentes na exposição logo depois dos primeiros estudos. Curiosamente, estamos falando da primeira guerra mundial. Muito mais tarde, precisamente na ascensão do fascismo no mundo – e o nazismo na Alemanha – o pintor retorna aos traços infantis. Como se dissesse que o mundo é simples, bárbaro, não tem qualquer significado ou tenha tantos que talvez não consigamos apreender num primeiro olhar a uma obra com traços desajeitados. Ao mesmo tempo, algumas obras se destacam, com aquele mesmo traço geométrico fundido a um olhar simples sobre as coisas. Faz pensar se a crise pode produzir tanta criatividade e, ao mesmo tempo, tanto deserto. Faz pensar que o motor da criatividade da brutalidade seja também, ele mesmo, algo que se exija respostas simples, brutas, infantis.
Impressiona-me a capacidade de um artista ser ao mesmo tempo complexo, colorido, simples e infantil e, ao sê-lo, fazer todo o sentido.