

O Coringa é talvez o mais fascinante personagem dos quadrinhos. Sua loucura serve de escada para o Batman se tornar, ele também, o herói mais interessante deste universo. E, por isso, toda a sua nova aparição no cinema, na tv e até mesmo nos games merecem atenção. Mesmo como em muitos casos, para se criticar o insucesso.
No cinema, assim como no teatro, ocorre um fenômeno interessante. Cada nova montagem alça a história e seus personagens a um novo patamar. Não é o caso de se usar o que foi construído como ponto de partida. Ainda que sirva de referência, é onde não se deve chegar. Se na Ciência, podemos subir no ombro dos gigantes que nos antecederam, na arte os caminhos devem ser percorridos individualmente, estudados, porém não devem de maneira alguma serem repetidos.
Sobre o novo filme, o que avaliar? Temos talvez pela primeira vez um coringa diferente daquele consagrado por Heath Ledger. E por isso, o melhor coringa segue sendo o do Heath Ledger, mas a melhor personagem é do Joaquin Phoenix. Por que? Bom, antes devemos fazer uma reflexão no que ele representa, ou deveria representar. O que é o Coringa? Creio que podemos definir como a insanidade do mal, e quanto mais absoluto esse mal, melhor. Enquanto Batman usa uma máscara para combater o crime, o Coringa é a própria máscara, fruto talvez de uma soma de todas as sociopatias. E, por isso o Coringa mais consistente é um que não gere compaixão.
Um dos momentos mais simbólicos do Cavalheiro das Trevas era a explicação da cicatriz do seu sorriso que ele insistia em dar ao longo do filme, em versões diferentes. Quando ele corta o primeiro, explica que seu sorriso foi porque seu pai era alcoólatra e certo dia questionou porque ele não ria – o incrível “why so serious? Vamos colocar um sorriso nessa sua boca”. Depois, ao estar próximo de matar Rachel Dawes, nega a história anterior contando que uma suposta mulher que amava tinha sofrido um acidente e teve uma cicatriz semelhante, então fez uma cicatriz nele mesmo por empatia.Um recurso incrível, pois assassina imediatamente qualquer história do personagem.
O Coringa mais insano não gera compaixão e por isso não pode ter uma triste história. O que faz o Coringa de Heaht Ledger melhor é mais que a sua interpretação, é o enredo. Ele se contrapõe a um sombrio Batman como um espelho macabro e toma uma dimensão maior face ao seu antagonista. E consegue fazê-lo com eficiência pelo mistério que o enredo o imputa ao simplesmente lhe negar uma triste história.
E por que o Coringa de Joaquin é um melhor personagem? Primeiro, façamos um exercício de simplesmente retirar as poucas referências ao universo de Gotham do filme. Chamemos o filme sobre Arthur de O Palhaço, Faces da Loucura ou O Riso e ele possivelmente teria um conteúdo dramático semelhante. Mas não, é importante lembrar que ser o Coringa também traz, digamos, grandes responsabilidades. Sim, não estamos falando de um palhaço qualquer. Se a história é do Coringa, se aqui ele é o herói, então ele também deve percorrer o seu caminho de superação. Esta trajetória onde ele enfrenta a sua própria inadequação frente a um mundo ele mesmo inadequado, é o que o torna quem ele é, ou será, e confere a dose de empatia para o personagem necessária.
Se talvez não consigamos torcer por ele, frente ao processo progressivo de amoralidade que o personagem coloca em prática, certamente podemos admirar sua devoção ao lado mais simples, puro e ingênuo da arte. Suas danças bucólicas, seus truques inocentes de palhaço, suas piadas sem graças, recurso que tangencia a fronteira de um filme de arte. De alguma forma, o Coringa de Joaquin consegue ser o mais amável dos vilões –com certeza um herói dentro de sua narrativa – pois representa a inadequação de uma ingenuidade na fronteira da amoralidade frente a um mundo corrompido. Se ele não pode simplesmente ser um palhaço, então ele pode ser o Coringa e rir do mundo como ele sempre quis.
E é justamente o espelho de um mundo corrompido, sem empatia e onde cada vez mais a inadequação é mais a regra do que a exceção que torna o filme tão atual, instigante e angustiante. Daí por isso as tantas críticas, em especial daqueles que de alguma forma querem naturalizar certos aspectos que nos lembram os dias atuais. E se incomoda tanto, se causa esse riso nervoso, ou mesmo em alguns momentos certa admiração, é porque o Coringa de Joaquin talvez não seja o melhor, mas certamente é o mais atual e necessário.