

Recentemente, descobri que o falecimento de um grande amigo é uma espécie de morte também sua – a de um pedaço de sua história. Pessoas que marcaram parte significativa de sua vida são gatilhos que restauram um passado que não volta. E o seu reencontro tem essa função de juntar as partes com cenas, cores, palavras e sentimentos – além de criar novas memórias. E a morte é cruel por ser uma assassina fria e sem sentido deste ciclo.
Restaurar e unir parte quebradas é algo que uma pessoa como eu, uma broken people, deve fazer de tempos em tempos ao longo do seu cotidiano. Para quem não conhece o termo, a tradução pessoa “quebrada” não dá a dimensão correta. Uma pessoa “quebrada” – broken – é alguém que tenha sofrido traumas que a deixou em pedaços em momentos de sua vida, alguns que talvez nunca retornem para o lugar. E pessoas assim precisam de amigos, mais ou menos quebrados também, para se sentir parte e para juntar e compartilhar suas peças.
Maria Eva, ainda que vivesse parte do que eu vivi, não era como eu, quebrada – ou ainda que fosse estava num grau abaixo de mim, ao menos na minha frente – e talvez por isso tenha sido a melhor amiga que eu poderia ter na ocasião. Uma amiga fiel que sempre quando possível, sem exageros, estava comigo a reunir minhas peças e me ajudar a curar das dores para seguir em frente. Isso claro, entre os tantos encontros de amizade, conversas e inutilidades em geral, tão necessários igualmente para as amizades. Por relatos de outros conhecidos, assim era Maria Eva com todos a quem cultivava afetos. Quero compartilhar com eles essa dor, se for possível.
Para quem não a conheceu, ou não o suficiente, Maria Eva era uma pessoa dedicada, sua mente cartesiana estava sempre a pensar e medir o que fazer, o que o outro sentia e todas as dimensões envolvidas em qualquer ocasião e relação. Definitivamente a literatura argentina deixa marcas. Creio que derivava daí uma certa teimosia sua e um certo cartesianismo que contrastava com algumas de suas decisões sem sentido. Então, sua racionalidade dava espaços para uma pessoa (extremamente) gentil, de riso fácil e encantadora. Ao deixar de lado os seus pensamentos conflitantes e revoltos, chegava a ser espontânea. Definitivamente, a música brasileira deixa marcas também, mas isso pode ser apenas uma interpretação minha.
Maria Eva não cantava, interpretava canções e alcançava o âmago das pessoas com um repertório cuidadosamente selecionado. Algumas vezes, tive a oportunidade de lhe apresentar sambas que, mais tarde, ela pedia para eu gravar. Então, o fazia com minha voz para ela estudar as nuances do idioma e os ritmos – talvez não fosse a melhor pessoa para a tarefa mas Maria sempre foi gentil. Ela também compartilhava músicas comigo e foi por seu meio que pude conhecer parte da rica musicalidade argentina. Hoje, chove, e Astor Piazzolla toca em minha mente sempre quando a água cai – ainda que tenha certeza que ele era muito “pop” para ela.
Compartilhamos a (minha) adolescência – ela era mais velha que eu – e o início da juventude, quando se aventurou a morar no Brasil por um tempo. Volver a los 17, despues de vivir un siglo. Es como decifrar signos, sin ser sábio competente. Em mais que uma ocasião, ela cantava e traduzia essa música que nunca fez tanto sentido quanto hoje. Acho que prefiro a sua versão que agora, talvez, só vá existir na minha memória. Depois, acabou que a distância nos roubou o convívio, mesmo assim sua lealdade sempre cimentava nossa amizade. De tempos em tempos, me mandava mensagens, me ligava e isso me incentivou a fazê-lo também, mantendo os laços o tanto quanto possível.
Depois de um dia inteiro lamentando não ter a encontrado mais e recorrendo a memórias para preservá-la, lembrei de nosso último encontro. As vezes, mesmo indo ao Rio e com compromisso de estar com sua mãe e com outros amigos, dava um jeito de me encontrar em São Paulo e ficava dois ou três dias. Então, fez um pedido que teve um peso, uma gravidade incrível – queria ir ao litoral norte de São Paulo. Estava tão certa que ia fazê-lo que falou que iria sozinha caso não quiséssemos ir. Foi assim, que fomos todos de carro com minha família para o Guarujá e removê-la da loucura de ir sozinha. E, assim, compartilhamos o último momento que tive com ela que começou na praia e terminou em um quiosque tomando nossa última cerveja e olhando para o mar. Não poderia agradecer mais a sua teimosia.
Hoje, sinto essa dor, de ter certeza que perdi uma amiga e o lamento de ainda não conhecer sua filha, Gaya – não há nome mais Maria Eva que esse – e seu marido Gabriel – pelos seu contato nessa ocasião vejo que era a pessoa certa. Espero ter a perseverança que Maria tinha para conhece-los e manter os laços que nos une desta amizade. Afinal, este ponto de afeto rompe uma barreira e estabelece aquele velho clichê – os amigos são a família que escolhemos.
De todo o modo, o fardo da perda continua. Nunca mais vamos rememorar os momentos de nossa amizade – que resgata outras perdas pelos vínculos compartilhados: Minha mãe, Luiz Carlos, César, Isaías, puxa, é tanta gente que se foi. E o dela parece doer mais – talvez pela absoluta inconformidade com o roteiro que insistimos esperar da vida. E, uma dor pessoal e egoísta, de não poder mais volver a los 17 e resgatar esse espelho que são as amizades profundas que faz você olhar para a pessoa e ver o reflexo consciente da imagem que junta as nossas e faz o que somos.
Adeus minha amiga querida, te quiero mucho e voy a te extrañar para siempre.
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