A Regina Duarte virou o assunto mais comentado da semana até um futuro próximo quando, claro, o presidente ou talvez outro ministro consiga superar a bizarrice de sua atitude. Sua atuação na entrevista à CNN foi interpretada de diversas formas: loucura, maldade, arrogância, servilismo e tantas outras. Nenhuma, de fato, exclui a outra, e se fundem em um momento tenso para a atriz – quando questionada recentemente até pelo seu subalterno, que estava na mesma reunião que poderia resultar em sua demissão, Regina teve medo, mais uma vez, e mostrou qual é a sua reação frente a ele.
Quando Bolsonaro convidou Regina Duarte para a Secretaria de Cultura, ele trouxe um nome que vinha junto com uma chancela para a sociedade. Estava ao lado da “Namoradinha do Brasil”, atriz com vasto currículo na TV, no cinema nacional e até no teatro, veja você. Quem é especialista em teatro, tv e cinema pode eventualmente questionar o talento da atriz e apresentar argumentos sólidos. Creio também que o contrário seja possível, dada a vasta obra que Duarte tem a seu favor. Costumo dizer que o artista não é avaliado pelos seus erros, mas pelos acertos. Se ele alcançou ao menos uma grande obra, pode se alçar definitivamente na história da arte e isso frequentemente acontece. Porém, como não assisto novelas e pouco conheço do talento da atriz, prefiro me eximir da avaliação.
Dito isso, faço um breve parênteses e aí peço licença a meus amigos da interpretação, inclusive minha esposa. Sou da opinião que os artistas muitas vezes estão na fronteira da moral e até faz parte de seu “papel” transitar nela numa linha tênue, e também que suas obras não devem ser avaliadas por esse prisma. Se não o fizéssemos, grandes obras da humanidade perderiam a relevância quase espiritual que detém. A obra de um artista deve ser preservada pelo bem da humanidade e frequentemente grandes artistas são péssimas pessoas, ainda que não seja uma regra – nada na arte é regra. Bom, a “Namoradinha do Brasil” deve ser um exemplo disso, certo?
Mas qual é a obra da Regina Duarte exatamente? Aqui apresento minha tese sobre o ofício do ator e começo lançando uma pergunta: o que existe primeiro o jardim ou jardineiro? O jardineiro, pois só existem jardins saídos da mente dele – o próprio jardineiro. Quanto mais complexa é uma peça, um vídeo, um filme ou uma novela, mais pessoas estão envolvidas, e em grande medida o autor dela – aquele que concebeu sua gênese – é o jardineiro, que cuida das flores. Por isso, atores, costumam ser apenas uma parte do que seria uma grande obra, correto? Não poderia ser mais errado. Grandes atuações costumam elevar filmes, séries e, claro, novelas, para um outro patamar. Porém, o ator sempre se depara com um agente limitador. Afinal, não é ele que escreve, que dirige e que produz – a não ser claro que o faça, e isso faz parte do argumento. Frequentemente, os grandes atores estão associados às obras que fizeram e essa é uma relação simbiótica. Grandes obras costumam contar com grandes atuações, mas será que grandes atores podem existir sem elas? A questão é quais as grandes obras que você, ator, deixou para a humanidade?
Um grande ator constantemente deve gerir sua carreira e isso não é nada trivial. A tentação de fazer o fácil, o rentável e o inexpressivo é constante, basta ter dinheiro envolvido o que é constantemente normal. Robert de Niro e Al Pacino são bons exemplos de como o dinheiro pode tornar carreiras nulas durante anos. Escolher papeis, buscar grandes diretores, alçar sua obra internacionalmente, são pré-requisitos para gerar um legado nessa área. Escrever, dirigir e produzir ajuda muito. E aí gostaria de fazer um contraponto, até pedindo desculpas a ela. Em oposição à obra de Regina Duarte, gostaria de falar da obra de outra Regina – a Casé. A comparação seria inútil, se não fosse atual. Enquanto uma está no auge da política cultural do governo, a outra está no topo da cultura brasileira, e hoje, mais que nunca, ambas estão em oposição completa.
É difícil dizer o que seria a definição de cultura do atual governo. Alvim tentou defini-la, mas suas referências foram, digamos, um pouco literais e sua temporada foi encerrada antes do prazo. Regina mencionou o pum do palhaço e basicamente é isso que existe, apenas um odor insosso e uma alergia incômoda sem riso. Em algum sentido, é melhor do que se poderia supor. Ter nenhuma cultura governamental é melhor que ter uma fascista. Neste sentido, seria até melhor como está, a Secretaria de Cultura ser um órgão meramente pro-forme.
Dito isso, e a completa irrelevância do cargo, mesmo que consiga seu objetivo, voltemos à dicotomia. Enquanto Regina Duarte foi a “Namoradinha do Brasil”, a Casé acabou se lançando em sua carreira, mesmo que por acaso, numa busca pelo verdadeiro Brasil. Um dos resultados foi o maravilhoso Que Horas Ela Volta, um filme que entra para a definição da psiquê brasileira de forma semelhante ao que Parasita fez com o coreano. Uma sensibilidade que aponta as contradições do afeto e os afetos das contradições que existem em nossa sociedade – particularmente aquela que estava prestes a eclodir num conflito em 2015. Em certo sentido, Que Horas Ela Volta tem dimensões psicológicas mais profundas que Parasita, porque a pobreza e a riqueza na nossa sociedade se construiu, arrisco a dizer, sob alicerces muito mais complexos.
O impacto de Que Horas ela Volta – merece um texto só para ele – é um dos gatilhos para essa comparação, mas a carreira de Casé é muito além disso. Principalmente por suas escolhas, Eu, Tu, Eles um marco no cinema nacional quando se retornava à produção; Eu Te Amo, de Arnaldo Jabour, e tantos outros que não tenho o tempo e o conhecimento para enumerar aqui. Até sua subversão da televisão brasileira com programas como “Brasil Legal”, “Muvuca”, “Central da Periferia”, “Esquenta” que colocavam o povo como protagonista foi uma revolução na Globo, sempre contribuindo a essa complexa dialética entre o tradicional e progressista que faz parte da identidade do canal.
E por isso a Regina que quero para o meu Brasil é a Casé. Porque o Brazil de Duarte não conhece o Brasil, não merece o Brasil. Enquanto uma é a “Namoradinha”, a outra será o quê? A protagonista . Val- a personagem de Que Horas Ela Volta ao final descobre que tem escolha, que ela desde o início era a personagem principal, assim como sua filha, e, no fundo, é disso que se trata. Muitos outros papeis da atriz e escolhas em sua carreira artística mostram que povo brasileiro é e pode ser cada vez mais protagonista. Também é isso que gera tanto antagonismo em nossa história e atualidade e que dificilmente nossos roteiristas conseguem traduzir em grandes obras. A maior parte dos nossos escritores, roteiristas, artistas não vivem os verdadeiros dramas e antagonismos da nossa sociedade, seja pela própria história ou por não exercitar uma verdadeira empatia – como a da Regina Casé, que não vem de uma origem humilde até onde sei.
Regina Casé é uma das protagonistas do Brasil e seus personagens assim o são. Representam uma luta hercúlea por um espaço que muitas vezes não lhes pertence e deve ser conquistado e é isso queremos: Protagonistas. Chega de namoradinhas! A grande dificuldade de achar grandes roteiristas e obras é justamente porque ainda não descobriram os nossos verdadeiros heróis e seus autores, e eles são muitos, porém fica mais difícil encontra-los quando a própria política faz questão de massacrá-los. Seja na ditadura, seja anos depois que se conseguiu, por meio de acordos e acordatas se manter uma política econômica que faz uma economia politica sufocar os talentos que poderiam surgir, até anos depois.
Mesmo assim, a memória de um Brasil que resiste permanece. Seja pelos protagonistas que emergem das dificuldades – Cartolas, Zé Kettis, Adoniran Barbosas, Ivone Laras, Elzas Soares, Tim Maias, Hebes Camargos, Luizas Trajanos e tantos outros que não cabem em poucas linhas, quanto aqueles que conseguem reconhecer e retratar os nossos verdadeiros heróis por meio da arte, mesmo vindos de uma condição como Aldir Blanc, Flavio Migliaccio fez e Regina Casé também, ela vinda de uma condição de vida e seguramente continuará fazendo.
E, ironias à parte, prestes a uma prova do Enem iniciar quando as condições de competição serão ainda mais cruéis aos mais desfavorecidos e relembrando Que Horas Ela Volta e a Regina do Brasil – a Casé – que traz com sensibilidade e fascínio uma leitura do que é o Brasil e os brasileiros, eu me pergunto:
A QUE HORAS O BRASIL VOLTA, REGINA?
6 Comentários. Deixe novo
Que Texto!!! Que Apresentação de uma dicotomia tão atual…
“A Regina que quero para o meu Brasil, é a Casé. Porque o Brazil da Duarte, não conhece o Brasil, não merece o Brasil.”
Te parafraseando, Se Duarte é a Namoradinha do Brazil, seria o que a Casé??? Seria A Irônia da dramaturgia, onde se apresenta uma “Amante” melhor na qual, verdadeiramente, era ela a Namoradinha do Brasil?
E assim como você detalhou sobre o filme, havia uma escolha… Sempre houve….
E o que tem se Escolhido?!
Parabéns Bogado por esse deleite.
Abraços Meu Querido.
Que possamos estarmos, novamente, todos juntos em breve.
Me surgiu pela coincidência de ter assistido Que Horas Ela Volta – uma verdadeira obra-prima. Recomendo muito. Obrigado pela Leitura Adriana e espero encontrá-la em breve. bjs
Que Texto!!! Que Apresentação de uma dicotomia atual.
Te parafraseando, Se Duarte é a Namoradinha do Brazil, seria o que a Casé??? Seria A Irônia da dramaturgia, onde se apresenta uma “Amante” melhor na qual, verdadeiramente, era ela a Namoradinha do Brasil?
E assim como você detalhou sobre o filme, havia uma escolha… Sempre houve….
E o que tem se Escolhido?!
Parabéns Bogado por esse deleite.
Abraços Meu Querido.
Que possamos estarmos, novamente, todos juntos em breve.
Texto bom de se ler. A propósito, o apelido “namoradinha do Brasil ” foi dado na época da ditadura militar pelos generais de plantão. Faz todo o sentido, né? Um abração, Marquinho Literatura!
OLá Fernando,
se soubesse teria inserido a referência no texto. Talvez ainda o faça. Obrigado pela leitura e abraço
Para Regina, acabou, por sua conta e responsabilidade. Uma atitude infantil para a sua idade e a experiência que penso , deveria ter.