Ano passado tive o privilégio de participar de um evento cujo objetivo era pensar o digital. Uma das palestras que mais gostei foi a do guru Avinash. O início de seu discurso foi destinado para mostrar que a internet finalmente havia ultrapassado a “stupid TV” nos Estados Unidos e estava perto de fazê-lo no Brasil, estúpida porque afinal não oferece os recursos e as milhares de possibilidades que a internet atualmente oferece. O fenômeno era previsto por praticamente todos que atuavam no mercado digital, porém o feito demorou um pouco mais que o setor gostaria e a razão foi uma surpresa para todos: o desenvolvimento dos smartphones.
Basta observar que hoje qualquer plataforma pode ser acessada não apenas para trocar e-mails ou chats, mas sobretudo consumir mídia, incluso vídeos e filmes. Isto já havia abalado indústrias anteriormente, e continua abalando, porém a televisão até então conseguia se manter alheia à crise. A Rede Globo prosseguia com seus feudos a produzir e reproduzir os mesmos programas e formatos de sempre com doses homeopáticas de mudança, sem preocupar-se com a ânsia de novidade de um público cada vez maior.
As repentinas quedas de audiência de programas tradicionais, porém, acenderam o alerta e, pasmem, produziram o primeiro excelente resultado que pude apreciar. Tá no Ar, a TV na TV, se destaca justamente por criticar a instituição TV. Veja bem, a Globo já parodiava a TV, dentro do formato de vender e revender a si mesma que sempre utiliza, inclusive na grade convencional. A emissora frequentemente utilizava os enredos de novelas e da programação em geral para fazer um humor limpinho de si mesma. Metade do Casseta e Planeta era baseado nesta fórmula, o que acabou desgastando ainda mais o programa, que deveria ter acabado pelo menos dez anos antes do que o fizera. Porém criticar, satirizar, ironizar o formato televisivo na extensão que fez o programa, é algo realmente inovador.
Antes de tudo, ao se projetar no telespectador e sua relação atual com a TV, onde os pacotes a cabo tornaram-se populares, o TV na TV parece ser uma antítese do formato televisivo, como uma unidade. Afinal, a produção audiovisual busca criar uma coerência entre uma atração e outra, mesmo com os inúmeros comerciais entre elas, de modo a suavizar o telespectador e tentar capturar ao máximo a audiência para si. O zapear de um canal a outro, até “encontrar” algo para assistir, serve como crítica à própria plataforma, seja ela intencional ou não. De certa maneira,uma comprovação da máxima “A TV a cabo serve para demorar mais tempo para você se dar conta que não há nada para assistir”. Muito provável que seja algo devidamente planejado, vide as interrupções súbitas que o Adnet realiza para seus protestos humorísticos de cunho teológico-marxista-trotkistas-uspianos. Quadro, aliás, brilhante, que instaura a dúvida de até onde o humorista acha ridículo ou verdadeiro tudo o que ele está dizendo.
O formato alucinante de idas e vindas entre canais concilia cenas absolutamente surreais de cerca de um ou dois segundos, engraçadas ou não, a quadros onde supostamente o telespectador, você, atentou-se e resolveu prolongar a vida útil na tela. As referências televisivas estão por todo lado, a exemplo das chamadas para a faixa etária do programa, ou avisos hilários, como por exemplo “Este programa é recomendado para praticantes de Tai-Chi-Chuan”ou “interrompemos nossa programação para apresentar a propaganda eleitoral gratuita de jingles que só falem a verdade”. E, pela primeira vez neste país, vemos a Globo olhando fora de si, parodiando programas que não estão em sua grade, seja de emissoras abertas ou fechadas. É simplesmente brilhante o quadro Jardim Urgente que, ao mesmo tempo em que critica o formato, também ridiculariza uma tendência de culpabilizar a maioridade penal de 18 anos, mostrando pequenos deliquentes e seus delitos à luz inquisidora de um apresentador à La Datena.
As músicas que já caracterizavam o Adnet também são formidáveis, como a versão que fez do Corcovado para “Tretas do Coração”, ou ainda o espetacular jingle para o suposto candidato que, a bem da verdade, poderia servir para todos. Além dele, o Marcius Melhem está completamente à vontade, exibindo todo seu talento de interpretação humorística. Seguramente, alcançaram um grau de liberdade bastante satisfatório, que permitiu manter o programa engraçado na maior parte do tempo.
As comparações são inevitáveis, TV Pirata sem dúvida seria a maior referência, igualmente inovador e caótico para a época. Porém, o TV na TV tem duas características que o fazem perfeitos para o atual momento… da TV. Afinal, a TV não está mais só na TV. Hoje, o maior desafio de qualquer emissora é conseguir prolongar a durabilidade dos seus programas na internet. E ainda há uma questão crucial para toda emissora. Onde e como compartilhar este conteúdo? Utilizar as plataformas mais acessadas (Youtube, Facebook, Twitter) ou manter dentro do seu “território” para tentar aumentar a rentabilidade? O fato é que o programa exibe o formato perfeito para ser segmentado, disponibilizado e compartilhado na web, algo que pode contribuir para fortalecer o conteúdo da emissora na plataforma.
Mas isto não é tudo, e também não é o que faz do programa digno de nota, e é aí que retornamos ao argumento inicial. A metalinguagem humorística, de alguma forma, sempre existiu na TV, porém, sobretudo por razões comerciais, nunca pode avançar a ponto de questionar formatos, patrocinadores e até mesmo a televisão como um todo. Sempre pegou o atalho mais fácil, que na época era mais que o suficiente. Entretanto, a atual dispersão do público e a facilidade de consumo de conteúdos, gerou uma nova necessidade: é necessário sobressair-se a todo momento, não em relação a outros canais de TV como antes, mas a absolutamente todos os canais e plataformas que existem no mundo inteiro. E, para isto, é preciso criar conteúdo novo, e constantemente.
Como dizem, a necessidade faz o ladrão. E, sem dúvida, os melhores do Brasil estão na Globo. Este programa, e outras iniciativas que emergem pontualmente, me fazem crer que mais coisa boa vem por aí.
Bogado Lins é escritor, roteirista e articulador do Literatura Cotidiana