No meu tempo de vida, nem tanto e nem tampouco, busquei percorrer o meu país de um lado a outro. Gostava de elaborar um mapa onde pontuava os lugares que conheci e surpreendia-me ao relembrar dos meus pequenos feitos. A partir do início da vida adulta, aquela em que se inicia o triângulo família-contas-trabalho, fui forçado a interromper este processo de descobrimento. Durante anos, pormenores de toda a ordem – temporais, financeiros, familiares – dificultavam ao máximo o simples ato de ir à praia, principalmente considerando que instalei-me em São Paulo, que se queda à distância de pelo menos um engarrafamento do litoral.
Mesmo assim, em qualquer oportunidade, sempre busquei lançar-me ao inusitado. Qualquer lugar poderia ser uma ocasião de descoberta, de Campinas à Ilha Bela. E, desde que mudei-me para terras bandeirantes, cerca de oito anos atrás, pude conhecer cidades variadas do interior e litoral paulistano, além de uma ou outra escapada mais adiante, geralmente a trabalho.
Óbvio que, principalmente com o tempo, começamos a dar preferências para aqueles lugares com atrativos mais convenientes. Particularmente, sempre gostei de conhecer cidades históricas, talvez por conta das minhas constantes idas e vindas à serra fluminense. As cachoeiras e rios também fazem parte da minha paisagem particular. Deste modo, o local perfeito combinaria ruas que conservam e reproduzem sua história com florestas, rios e cachoeiras para aconchegar a visão.
Eis que ontem fui novamente a Paranapiacaba, cidade que combina ambas particularidades. Mais que isto, se destaca de todas as demais cidades históricas brasileiras por contar com uma arquitetura única. Durante o processo de construção da ferrovia que descia o litoral, abrigou operários ingleses que ergueram casas operárias simples, porém que combinavam com o horizonte. Em meio às casas geminadas, uma ou outra se destacam por sua função, abrigando por exemplo o mercado local e o clube, ou ainda reproduzindo a hierarquia social, destinando as casas mais bem acabadas para os engenheiros.
A combinação entre clima e arquitetura simula, ainda que de maneira discreta, um clima inglês, com temperaturas baixas e neblinas constantes. Coincidência ou não, lá está um relógio muito semelhante ao Big Ben, se destacando próximo dos trilhos, confirmando talvez esta obsessão inglesa por horários e compromissos. A floresta densa ao redor junto com a constante fog dá até aquela sensação de mistério que invoca os druidas e a fauna de seres fantásticos da mitologia celta.
A cidadezita, que conta com cerca de 1000 habitantes segundo a Prefeitura, figuraria certamente em qualquer guia turístico de qualquer cidade do Brasil, quiçá do mundo. Por suas características únicas, poderia muito bem estar no circuito nacional de cidades históricas. Mas, por um motivo ou outro, está no limbo dos destinos turísticos. Pergunte a qualquer brasileiro se ele já ouviu falar da localidade e muito provavelmente a resposta será não. Arrisco a dizer que boa parte dos paulistas e mesmo paulistanos não conhecem ou, ao menos, nunca foram.
A primeira razão é obviamente estrutural. Com todas as potencialidades turísticas, o local não oferece infraestrutura adequada. Apesar de uma iniciativa ou outra, destinada basicamente a arrancar sem dó o dinheiro dos visitantes, como um passeio com uma jerigonça pelas ruas, ou a reativação da Maria Fumaça, não pude notar nenhum hotel ou mesmo pousada com uma infraestrutura conveniente a quem se habilitar a ficar num local que a noite certamente não oferece nada além do que a natureza proporciona. Da outra vez que estive na cidade, lembro-me de alguns guias credenciados que ofereciam passeios pelo parque, mas isto era o mais notável esforço da Prefeitura em capacitação da população para oferecer serviços de verdade.
Veja bem, o núcleo principal de Paranapiacaba deve contar no máximo com dez ruas e muitas das edificações não estão totalmente restauradas, a maior parte sequer oferece alguma coisa ao turista. As casas que fazem parte do “circuito” são basicamente restaurantes, bares e lojas de artesanato, todas com gastronomia ou produtos muito similares. Cheguei a entrar em quatro estabelecimentos para escolher onde comer e todos, sem exceção não tinham cardápios. Uma praça situada bem no meio do circuito, estava abandonada com brinquedos quebrados e com o mato crescendo. Não estranha que o destino não seja uma opção óbvia para visitas constantes no final de semana, se você for uma vez, provavelmente terá usufruído de um bom resumo do que você terá no dia seguinte. Claro que o certo abandono favorece um turismo mais despretensioso, muitos sem dúvida vão preferir assim, mas conhecendo cidades históricas em toda a parte, não vejo contradição entre um tipo de turista e outro. Antes pelo contrário, muitas vezes o desenvolvimento de um turismo segmentado aumenta o popular, vide Ouro Preto, que oferece opções de todos os tipos.
Certamente o local em si não é extenso o suficiente para grandes iniciativas, mas ele se situa a no máximo vinte minutos de carro de parte da Represa Billings, local igualmente cheio de potencialidades turísticas. Um resort, por exemplo, não cairia bem em Paranapiacaba, mas certamente seria ideal na represa. A integração do circuito seria óbvia, a permanência em um ou outro lugar, e o passeio em ambas, talvez até em outros locais nas cercanias. Naturalmente, as sinergias promoveriam um circuito noturno adequado à cidade e melhores opções diurnas na vila.
Porém, de alguma forma, há um outro entrave que provavelmente limita esta iniciativa. Antes de tudo, o paulistano, e paulista em geral, parece não ter muito apego à sua história. Primeiramente, paulistano, tente se lembrar de cidades históricas paulistas? Além de Paranapiacaba, que não é tão conhecida assim, temos São Luiz de Paraitinga e… Bananal? Poderia incluir ainda São Sebastião, quando estive na cidade quedei-me no centro histórico esperando o ônibus para retornar para casa. Porém, não notei circulação de turistas ou qualquer melhor aproveitamento deste ativo. Chegamos ao veredicto, o paulista é afeito à viagens e circula pelo Brasil e pelo mundo procurando grandes atrações, inclusive históricas, mas parece não conseguir reconhecer aquelas situadas no seu quintal. Tudo talvez derive de uma possível síndrome dos bandeirantes: o eterno ímpeto de descobrir e deixar para trás as terras que passou.
Ora, história é que não falta por aqui. A capital do Estado é mais antiga que a maior parte das cidades do Brasil, incluso o Rio de Janeiro. Estamos na terra dos bandeirantes, epicentro da economia do café, onde estão as cidades que vivenciaram todas estas transformações? Obviamente elas continuam por aqui, Campinas, por exemplo, era terra dos barões de café, porém nunca ouvi qualquer turista mencionar que visitou a cidade para conhecer seu lindo casario colonial. Piracicaba está lá pelo menos desde o final do século XVIII, como ponto de navegação do Rio Tietê e como um dos principais produtores de cana, porém tampouco conheci alguém que visitou a cidade para espiar a história local.
Por ironia do destino, a cidade que mais se destaca como ponto turístico no interior, é Campos do Jordão, cujo casario alemão é na sua maior parte inventado. Nunca fez parte de fato da história local, talvez com uma ou outra exceção. Os alemães foram para região em número relativamente baixo se comparado a outras regiões do país, e com o propósito de criar e desenvolver a nascente atividade turística no início do século passado. Sua presença foi mais um enredo bem construído do que real. É como uma Disney, celebrando as supostas raízes européias.
Em contraste, temos Petrópolis e Paraty no Rio de Janeiro, cidade inclusive que atrai mais paulistas que cariocas. Em Florianópolis, muitos já ouviram falar em Laguna. No Rio Grande do Sul, temo
s a região de Missões, além de localidades na serra que preservam sua raízes. No Nordeste, só para citar rapidamente, temos Penedo, Diamantina, Ilheus, Olinda, Sobral, dentre outras. Até no Centro Oeste, temos bons exemplos, como Pirinópolis e Goiás. Minas Gerais então nem se fala, conseguem conciliar a terceira maior economia do país com um apego as tradições.
De alguma forma, tal fenômeno explica o traçado do centro da cidade, uma verdadeira colcha de retalhos com misturas de tempos e referências. E também a absoluta facilidade de colocar abaixo qualquer resquício de tradição, como tenho visto nos quase 10 anos que estou por aqui. Porém, reconhecer a história no mosaico é mais importante do que conservá-la. Nenhuma cidade de fato conserva as coisas como elas são, o mais importante não é o casario antigo, mas a sensação que ela traz, mais precisamente o retorno emocional. É óbvio que grande parte do casario de Ouro Preto não é o mesmo de 1700, tampouco de Paris, mas o cuidado em conservar é o que de fato reproduz a história, e não o mero conservadorismo arquitetônico, ainda que ele em alguma medida seja importante.
Talvez falte apenas isto para São Paulo assumir o motor cultural do país. Pois se a sua economia já atrai naturalmente quem produz e cria cultura no Brasil, por outro lado ainda não é o local ideal para que surjam espontaneamente manifestações artísticas variadas que sugiram uma identidade local e, mais importante, que elas sejam reproduzidas, contextualizadas e conservadas.
Pois no fundo, para uma tradição existir e permanecer, antes ela precisa ser descoberta ou, mais precisamente, ser inventada. E, by the way, adoro Campos do Jordão.
Bogado Lins é escritor, roteirista e articulador do Literatura Cotidiana
1 Comentário. Deixe novo
Bogadones, ótimo texto! Muito bacana você lembrar a nós, paulistanos, que não temos interesse nas nossas melhores cidades. Adoro Paranapiacaba, São Sebastião, SLP, mas ainda não Bananal, o que me fez lembrar – vai, paulistana! – que preciso conhecer esse lugar. Também adorei saber sobre a falsaria alemã de Campos do Jordão, não sabia desse fato. Que vergonha, que vergonha. Apesar de nunca ter gostado desse lugar, seu texto terminou muito bem! hehehe Abração, Bianca