Minha patroa é uma pessoa interessante. É preciso frisar: não a minha patroa de casa, mas a do trabalho. Pois é, o homem moderno tem patroa em casa e no trabalho. Mas enfim, voltando ao “causo”, ela tem suas peculiaridades que merecem ser descritas, por exemplo, numa crônica.
Primeiro de tudo, é importante mencionar sua autorização explícita para falar mal dela. Não na sua frente, claro, mas lá no Rádio Peão, e com moderação naturalmente. Ela acredita que eu fale mal dela somente com a patroa de casa, porque eu sou discreto. E, é verdade, acho que poucas vezes falei mal da chefa, provavelmente todas elas em casa. Talvez, pasmem, tenha me tornado “discreto”. Além disso, gosto dela, de verdade. Comparada com o meu antigo patrão, ela é uma bênção. Apenas, como todo o resto do mundo explorado, tenho receio de perder o emprego.
Sua justificativa para dizer que é normal tal boataria é sua visão marxista do mundo. Pois é, eu tenho uma patroa marxista! E é bem versada no assunto, pois, durante algum tempo conversando, citou conceitos que só quem teve lá suas leituras poderia desenvolver. Dizia que nossa relação não passava de uma luta de classes, com alguma “superestrutura” que ela fazia questão de manter, traduzindo uma prosinha para enfeitar. Em vez de aproveitar a situação para pedir um aumento, argumentando que seria necessário diminuir a minha mais-valia para poder pagar as contas, eu, burro, contra-argumentei citando Durkheim, falando que não era bem assim. Mais uma vez, minha honestidade intelectual me boicotou!
Outra coisa que merece nota é seu simpático hábito de nos trazer lembranças de suas viagens ao exterior. Inaugurando uma exposição aqui e outra ali, mesmo assim, faz questão de encontrar um tempinho para trazer regalos para nós. São lembrancinhas, é verdade, mas servem para que nós, que ficamos no back office, sintamos os ares destas longínquas terras a que nossa empresa chega. Caso curioso foi quando trouxe um lindo gorro da Bolívia com temas incaicos. Chegando em casa, minha mulher descobriu que o gorro inca era “made in China”, o que, digamos, retirou um pouco do terroir do objeto. Mesmo assim, o gorrinho é bonito, provando que eles realmente são bons nisso e estão em toda a parte.
Gosto também dos momentos em que fala sobre sua vida pessoal, como sua filha por exemplo. Em meio a qualquer instante, pode prosear sobre suas preocupações de mãe e, também, sobre seu pai, que não gosta. Diz que fica preocupada com sua primogênita por sua frequencia na noite paulistana e, também, pelos seus problemas de juventude. Mescla admiração a coisas que, talvez, não sejam tão fantásticas assim, e desprezo por coisas que também talvez não sejam tão ruins também. E não a julgo, pois descubro pouco a pouco esta seara do mundo patriarcal e, logo, serei eu a ver meu menino pelas lentes de aumento dos laços paternos.
É claro que ela não deixa de ser minha patroa, afinal é a “luta de classes”, mas gosto destas “humanidades” das pequenas empresas, particulamente desta na qual estou. A novidade agora, que gerou até reunião, é que a filha da patroa vai trabalhar conosco. Talvez, quem sabe, seja mais um tema para crônica…
Bogado Lins é escritor, roteirista. Esta crônica fez parte do livro Literatura Cotidiana de 2011