“Aqui estou mais um dia”, após mais de quarenta dias “mas ainda vivo!”, estou sobrevivendo ao isolamento social não sei dizer como, faz algumas semanas que acredito ter perdido o senso do que é o meu normal, ou estou normal e não consigo mais dizer isso por conta da ansiedade por quando as coisas vão mudar, não, mudar não, voltar à normalidade, porém dizem que não há mais a nossa normalidade anterior, então eu me angustio, e nessa brincadeira vários dias vão se sucedendo…
Papaaaaaaai, estou com fome!!!
Meu último dia de trabalho fora de casa foi algumas eras atrás em 17 de Março, já meus filhos foram à escola pela última vez em 13 de Março daquela mesma era. Desde então eu saí de casa – um apErtamento cada vez mais apertado, cada vez menor, cada vez com menos espaço – apenas meia dúzia de vezes que parecem ter acontecido na antiguidade da Idade Covid-19. Fui à feira duas vezes, fui buscar máscaras de EPI que uma médica amiga da minha sogra que se licenciou doou para minha esposa que é médica e que está trabalhando no “covil” da Covid-19 de São Paulo no HC, outra vez para sair para pegar máscaras de pano que a enteada da minha irmã fez para a família toda, uma vez para pegar provas e livros em uma das escolas em que trabalho para corrigir, e entregar coisa em outra…
Papaaaaaaai, acabou o filme!!!
Estou em jornada múltipla, mas é como se eu fosse o bobo naquela brincadeira de bola, cada instante correndo para um lado sem parar, sem conseguir sair, sem pausa, sem descanso… Sou pai em tempo integral, professor em home office, faxineiro, lava-louças, psicólogo de esposa anestesista, recreador infantil, lava-roupas, professor de plantão on-line, telefonista, fazendo homeschooling com meus filhos, aliás não sei se são crianças, pessoas ou capirotos, possuídos por “espíritos zombeteiros” malignos…
Papaaaaaaai, começou jornal!!! Não quero jornal!!!
E ainda tem ministro da saúde falando A, presidente falando B, governador falando A+, presidente fazendo M, ministro da justiça sumido, presidente fazendo M+, ministro da economia querendo enfiar no C do povo – e o medo de ter redução de salário?! E nem posso reclamar, afinal tenho emprego formal… – presidente falando e fazendo M, ministro da saúde com a cabeça a prêmio, presidente trocando ministro da saúde no meio do pandemônio para combater a pandemia, ministro da saúde novo semivivo com discurso semiclaro, semidiferente do anterior mas com apoio do semipresidente, semimilitar, semimiliciano, seminfectado, semimito, sem ministro da justiça semiheroi, semimaculado, sem indicação ao STF, sem negar candidatura em 2022, sem provas pra uns com provas pra outros, sem convicções, convicto demais… E tem a cloroquina, e não tem vacina!
Papaaaaaaai, ele me bateu!!!
E o polimetes Paulo continua: árbitro de MMA infantil, jardineiro de varanda, confessor de casos clínicos, mediador de chamadas de vídeo, recolhedor e separador de brinquedos, balcão de reclamações, criador, editor, professor e cameraman de videoaulas, auto-fazedor de obeso, censor de programas de TV, sparring de filhos, de esposa, corretor de redação, líder inglório de jogos e brincadeiras, biodigestor de qualquer gênero alimentício, sobretudo com açúcares, mediador de encontros virtuais semanais entre coleguinhas da educação infantil de meus filhos que mais parece uma sessão de gritos, personal stylist de crianças de 2 a 4 anos, agenda de atividades…
Papaaaaaaai, para de trabalhar!!!
Não bastasse tudo pelo que passamos, meu computador resolveu se auto-aposentar, queimou o HD, deu pau, bugou, sei lá que raio aconteceu. Mas ok, hoje em dia dá para fazer tudo com um smartphone… Exceto recuperar tudo que eu tinha de fotos, documentos e aulas preparadas no computador. Mas ok, eu tenho uma memória externa, presente da minha esposa… Descobri que o último backup fora feito quando minha filha nasceu – há quase cinco anos. Em outras palavras, antes da minha vida mudar completamente, para não dizer desarranjar para sempre… E claro, sempre pode piorar, no segundo dia sem computador esgotou a memória do meu telefone e quem disse que eu conseguia fazer qualquer coisa que não fosse apagar arquivos, ao mesmo tempo que fazia reuniões com coordenação e direção da escola, cuidava das crianças e tentava permanecer um ser humano equilibrado. Será?
Papaaaaaaai, fiz cocô!!!
Para melhorar, em alguma dessas Idades da quarentena, meu filho decidiu que não usaria mais fraldas e por três dias eu tentei, eu juro que tentei com todas as minhas energias e a paciência que me restava não contar as 22 cuecas que lavei de xixi ou cocô feitos na sala, no sofá, no quarto, na cama, na cadeira da cozinha – claro, não que ele tenha mais de 6 ou 7 cuecas, então tinha que lavar e rezar para secar – mas também tinha minha filha de quase 5 anos que resolveu em um desses dias fazer uma piscina e dizer que “escapou!”, provavelmente querendo minha atenção, aliás como a necessidade de atenção cresce à medida que a quarentena avança… E ele ressuscitou as fraldas ao terceiro dia…
Não aguento mais por a mão em xixi e cocô!
Não aguento mais saber como aumentam os casos de covid-19 e diminui a quantidade de leitos no HC.
Não aguento mais receber e-mails e mensagens em toda e qualquer rede social de alunos e pais de alunos!
Não aguento mais não ser remunerado pelo trabalho de cineasta, editor, vlogueiro…
Não aguento mais “férias frustradas” trancafiado em casa!
Não aguento mais feriados que não serão repostos!
E as pessoas falando de lives, maratonando séries, lendo livros, fazendo ioga, meditação… a mão de agredir chega a tremer…
Paulo Roberto Laubé, às vezes jornalista, às vezes professor, às vezes poeta
21 Comentários. Deixe novo
Paulo…morri de rir aqui…sentimento de impotência, compaixão e companheirismo…td junto e misturado
mil coisas misturadas tudo ao mesmo tempo agora e sempre….
Amei, querido! Terminei a leitura sentindo falta de ar.
Sinto falta de sono, descanso…
Meu querido escritor. Vc virou mesmo um bom-bril com mil e uma utilidades domésticas. Sua narrativa/ descritiva está perfeita. Enxerguei exatamente como vc está, mas como Deus não dá uma carga maior do que aguentamos, vc vencerá e logo poderá dizer: não sei como consegui. Mas vai conseguir: é jovem. A velha aqui está mais ou menos nessa mesma situação, com uma criança de 72 anos que não sabe o caminho da cozinha para pegar um copo d’água. Só que a culpa é minha que não o pus na linha. Também não sei o que é live. Séries ? A pilha de livros me olha interrogando: não vai me pegar nem um pouquinho? Na torcida para que vença o desafio!!! Bjs
Meu querido escritor. Vc virou mesmo um bom-bril com mil e uma utilidades domésticas. Sua narrativa/ descritiva está perfeita. Enxerguei exatamente como vc está, mas como Deus não dá uma carga maior do que aguentamos, vc vencerá e logo poderá dizer: não sei como consegui. Mas vai conseguir: é jovem. A velha aqui está mais ou menos nessa mesma situação, com uma criança de 72 anos que não sabe o caminho da cozinha para pegar um copo d’água. Só que a culpa é minha que não o pus na linha. Também não sei o que é live. Séries ? A pilha de livros me olha interrogando: não vai me pegar nem um pouquinho? Na torcida para que vença o desafio!!! Bjs
Vençamos o desafio e coloquemos as “crianças” na linha!!!!
Parece o diário de uma catástrofe. Mas é o diário de alguém normal se desdobrando para dar vida normal aos que ama. Vai passar e vc sairá normal. Porém um pai, marido, filho, irmão, amigo e um professor melhor. A melhor versão de si mesmo.
tomara…
Paulo, esse seu texto representa, sem dúvidas, o cotidiano quase enlouquecedor de centenas, se não milhares de brasileiros(as) “quarentenados”, quase sequelados, porém, heróicos. Sacrificando liberdade, sanidade para que tantos outros heróis, que não tem essa opção, possam ter uma mínima chance de continuar lutando pela sobrevivência.
Parabéns meu caro amigo.
Obrigadão
Querido amigo, você fez um grande desabafo…fantástico, ao ler fui imaginando cada situação descrita,
algumas engraçadas, outras dolorosas e frustantes… espero que esteja mais aliviado, vazio…o problema é se voltar a encher…bem, tudo é possível.
Estamos vivenciando tantas coisas ao mesmo tempo, será que se tivessemos a opção de apertar o botão para escolher, apertariamos o sim? Prefiro pensar nesse exato momento: o que eu vou tirar de Melhor nisso tudo!
Obrigada por me dar a oportunidade de ler algo seu. Beijo
Patrícia Guimarães
Vou lembrar essa: “o que eu vou tirar de melhor disso tudo?”
Hilário.
Rindo até 2022…
Irmão, eu ri do seu desespero. Ou será que foi de nervoso? Ou o desespero era um pouco meu? Tudo isso talvez… vai passar! Beijo
Tomara que passe logo logo… daqui a pouco enforco um!
Com todo esse cenário você conseguiu escrever!!! Está mantendo sua habilidade literaria, além de muitas outras que está desenvolvendo!!! Continue firme!!!!
Vou me virando, né!
Como disse a (tia) Irinilza (que eu chamava de tia qdo estava na escola rs), vc pelo menos conseguiu um tempinho pra colocar tudo no papel. Isso ajuda a aliviar um pouco a tensão. Vamos seguindo da forma que dá, fazendo nosso melhor, sem nos cobrarmos tanto. E mantendo a esperança de q em algum momento tudo vai melhorar… Beijos!
Cômico se não fosse trágico. Pelo menos acho que vc tá magrinho né com esse lerê todo. Força aí, vc é o cara.
[…] naquela tarefa sossegada de jornada múltipla enquanto meus filhos brincavam – finalmente brincavam juntos… – de casinha em que […]